quarta-feira, 31 de março de 2021

Ninguém se salva sozinho

Ando nos últimos dias com este pensamento na cabeça e, nem sei porquê, a qualquer hora do dia e nas mais diversas circunstâncias, ele se repete sem clara justificação…
Será já reflexo do ensimesmamento a que o vírus nos remeteu? Será já um grito a empurrar-me para os outros, a convencer-me da importância da comunhão com familiares, amigos e todos os que, incógnitos, contribuem para me facilitar a vida?
Realmente, os últimos tempos têm sido pródigos a experimentar o valor de muitos préstimos que me facilitam os dias.
Preciso de produtos do supermercado? Vou à Internet, faço uma lista e daí a umas horas estão a tocar à campainha para me entregarem os alimentos. Preciso de comprar um livro? É tudo simples: sem sair de casa, encomendo e daí a dois ou três dias aqui tens o pedido. O mesmo acontece com os ténis que calço, com o vinho que bebo, a comida para os meus dois gatos e com mais outras circunstâncias de que se tece a vida. Só é pena que ainda tenha de sair para resolver o que a Internet e o telefone não me resolvem. Vejam como um vírus me está a alterar hábitos através do confinamento obrigatório…
E agora olho para o circuito comercial que se estabelece para solucionar as minhas necessidades. Quantas caras anónimas se mexem e contribuem para o meu bem-estar! E não é só lá fora. Também aqui, em casa, eu começo a dizer: obrigado, Antonieta, por me facilitares a vida!
É esta rede de relações que me deixam muito agradecido e que eu transporto para novas realidades. Também eu devo ajudar os outros. Também eu devo facilitar-lhes a vida. E cada vez que o faço alegro o outro e alegro-me a mim próprio. Se calhar, muita gente envinagrada que há por aí é assim porque não ajuda os outros…
A minha Páscoa também se faz com este esforço em construir vida, colaborar com os outros, dar voz às boas causas, mostrar valores escondidos dos colegas, impulsionar projetos que vão satisfazer os que neles estão implicados.
Às vezes erro? Só não erra quem nada faz… E eu não vou por aí!

António Henriques

sábado, 13 de março de 2021

A raia de Alcoutim

Quando eu era criança, aparecia muito raramente na aldeia alguém a quem chamavam contrabandista. Lembro-me da bombazine e das gorras, aqueles barretes sem pala, ajustados à cabeça das crianças, com que nos protegíamos do sol e do frio e que só eles vendiam. Mal sabia eu que um dia alguém me colocaria nas mãos um livro a versar sobre essa economia clandestina que alimentava bocas de gente pobre, a viver de uma agricultura rudimentar, que precisava de outros apoios e audácia para melhorar as suas condições de vida.

Estou a falar do livro do meu colega e amigo, José Dias Rodrigues, a quem devo algumas das primeiras lições de Informática, que me iniciaram neste novo alfabeto a que muitos da minha idade resistem, ficando agarrados à imprensa de Gutenberg.

Publicou ele “A raia de Alcoutim” em setembro passado, numa homenagem à população da sua terra natal. E, como lhe prometi, aqui deixo a minha apreciação ao seu trabalho.

 

1 – Uma história

O autor, que logo no início afirma que não tem «qualquer pretensão de natureza literária», e quer apenas «contar uma história», não é assim tão destituído de conhecimentos, pois a sequência das páginas revela uma real ordenação de acontecimentos, uma descrição mínima de personagens e uma exaustiva abordagem dos ambientes e fainas agrícolas que leva o leitor a agarrar-se a esta história. Curiosamente, é ele que diz que «os relatos não são totalmente verdadeiros, mas também não são completamente falsos». Sim, é esta verossimilhança dos factos que nos prende e leva a imaginar que de acontecimentos reais se trata.

A nível literário, pensando nas técnicas da narração, quero ainda realçar estes pormenores: - logo no início, surge um facto inesperado – o ribombar de tiros, que nos prende pelo sofrimento das personagens e nos faz perguntar como é que eles agora vão resolver o problema; - depois, é a intriga que acompanha todas as páginas até ao fim do livro – quem te roubou o café? – foi o amante da Rosa? – quem será o amante da Rosa? - e mesmo nas últimas páginas ainda o problema não tem resolução definitiva, ficam dúvidas…

Finalmente, a nível literário, de vez em quando surgem imagens de fino recorte, como ver os homens a «deslizar como cobras ao longo do trilho irregular» (pág. 13) ou «ao ver a farda à sua frente, a adrenalina irrigou-lhe o corpo todo, como se uma injecção lhe tivesse sido aplicada…» (pág.25) ou ainda outra expressão: «José Cachopa ficou capaz de vida não ter! A sua cabeça cedeu como se uma onda gigante lhe tivesse rebentado dentro… (pág.170).

 

2 – O conteúdo

O autor, com a sua história, fixa-se especialmente naqueles 14 km da “raia de Alcoutim”, aquela linha imaginária ao longo do rio Guadiana, alongada para muito território espanhol,  por onde circula a vida de muita gente a viver do campo e com os mais corajosos a aproveitar-se da proximidade do território espanhol para reduzir a sua penúria através do contrabando, uma atividade perigosa por ser ilegal, não ter regras e deixar o indivíduo à mercê de um tiro, de uma prisão prolongada, dos imprevistos do negócio ou mesmo de uma traição.

O contrabando não enriquecia ninguém, mas ajudou alguns a viver melhor, situando-se entre os anos 30 e a década de 60 do século passado. Nos anos 60, outros fenómenos mais gerais alteraram a vida de muitos portugueses. O autor refere-se à emigração para fora (França/Alemanha) e mesmo para dentro de Portugal - os grandes centros urbanos e industriais - e ainda a guerra do Ultramar. Daí o subtítulo do seu livro: “Contrabando, emigração e outras narrativas”.

Esta realidade sociológica vai aparecendo ao longo das páginas através das duas personagens principais, o José Cachopa e o Manuel Roberto, um a viver do lado de cá e o segundo, depois do contrabando, a fixar-se no território espanhol, como agricultor a tomar conta de uma “finca”, já que a guerra de Espanha (1936-39) despovoara os campos na sua sanha militar de destruição, por morte de muitos e por fuga de outros que se sentiam perseguidos.

Ao longo das páginas, vamos assistindo às peripécias da vida destes dois amigos, que até se ajudam nas caminhadas com cinco ou seis homens que o José Cachopa leva consigo, carregando cada um 30 kg de café e deslocando-se para a Espanha numa distância de 30 km, onde o amigo o apoia e facilita os contactos. Mais tarde, os dois embarcam na aventura da emigração, vendo-os a trabalhar em fábricas na Alemanha por uns anos e regressando mais tarde para o seu Alcoutim, com um pecúlio que os ajuda a viver melhor os seus dias.

O autor contextualiza o desenrolar desta história local com a referência às circunstâncias políticas de Portugal, Espanha e Europa que também se vão alterando e provocando mudanças na vida das pessoas. A guerra civil de Espanha, a guerra no Ultramar português, o Maio de 68, tudo influenciou as mentalidades e os projetos pessoais. Achei curiosa a referência à tendência de os alcoutinenses irem para a Marinha ou a Guarda Fiscal, como maneira de fugirem à mobilização para a guerra nas colónias.

 

3 – Considerações especiais

- Regionalismos: relevo em primeiro lugar o uso de uma linguagem regionalista, só acessível a quem a usou por muitos anos, o que enriquece a verdade da história. É o vocabulário técnico do dia a dia, em itálico ou em nota de rodapé, que muita graça confere ao texto.

- Riqueza toponímica: o autor esforça-se por dar nome a cada palmo de terra, quer em Portugal quer em Espanha, como quem conhece bem o terreno. Enumera os treze postos da Guarda Fiscal na região com 92 homens, cada um com guarnições diferentes, dá nome próprio às empresas da região e até à Famel, a motorizada que o tocador do fole (concertina) usava para animar os bailes. Percorre as muitas “fincas” de Espanha por onde se espalharam portugueses com nome próprio. Já não é assim tão pormenorizado quando envia os seus personagens para a Alemanha, de onde ficamos com poucas referências.

- Realismo nas descrições: tenho que dizer que me impressionou o pormenor com que o autor descreve a habitação do casal que vai viver numa “finca” em Espanha, Tariquejo, ou como ele conhece bem estes negócios escuros, sem leis, as manhas dos recetadores, dando-se ao trabalho de fazer todas as contas no deve/haver do café, dos quilos de amêndoa, bombazine e alpercatas que trazem de volta e no pagamento aos voluntários que auxiliaram o contrabandista. É até hilariante a descrição dos passos para preencher os impressos dos candidatos à emigração legal para a Alemanha. Como também é com bonomia que o trabalho na fábrica da Alemanha é tratado como «uma brincadeira de gaiatos»!

E já me alonguei em considerações. Deixo os parabéns ao autor e o estímulo para continuar a valorizar a sua terra, os Balurcos, a que me ligam amizades inesquecíveis. Vou recrear-me um dia destes com a leitura de outro livro do José Dias Rodrigues - Ecos do passado em Balurcos”(2019), outra produção escrita a valorizar a memória da sua terra e do seu concelho.

 

António Henriques