domingo, 26 de dezembro de 2021

O meu Natal

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Não vejo anjos a anunciar o nascimento de ninguém. Não oiço pessoas a falar de um qualquer acontecimento extraordinário. Os pastores, com frio, ficaram nos seus casebres e não se deslocaram à manjedoura onde o milagre do menino nascido aconteceu. Até o boi e a vaca se estenderam preguiçosamente e não aqueceram Jesus!

Também não vi estrelas a marcar o céu com lancinante linha a apontar o presépio de Belém. Todos os fenómenos celestes apontam para a normalidade da sua existência, embora deixem pasmados aqueles que os olham na sua grandeza e misteriosa magnificência...

E que vejo eu?

As pessoas estão cansadas de tanto correrem à procura da prenda que irá mimosear aquele familiar ou amigo. Depois é preciso limpar a casa, preparar a roupa, comprar alimentos e confecionar refeições para uma casa mais habitada do que habitualmente. Descansar, só depois de Natal...

Noutros tempos, também eu corria. Agora fico-me mais na pacatez dos dias, contando que outros sejam os responsáveis por as coisas acontecerem. Já não há pachorra nem ligeireza de movimentos para fazermos a diferença. É a terceira idade, meu caro! Ou será já a quarta?!

Mas à minha volta vejo pais-natal por todos os lados, alguns a subir paredes e outros a descer de telhados e gente entusiasmada com estas imaginações. Vejo renas e trenós deslocados das terras geladas para locais mais temperados. É preciso acreditar, é preciso imaginar e cada qual escolhe o objeto da sua crença. Eu tento mais acreditar que Jesus Cristo é mesmo o grande revolucionário da história e conta comigo para criar paz e justiça em meu redor. Não posso fazer muito, mas vou tentando...

A família é por estes dias o grande móbil das nossas movimentações. E, se o Covid não tivesse estragado tudo com a infeção do nosso filho, era a família que nos fazia deslocar para a Polónia, para criar proximidade entre as duas partes, para nos conhecermos e nos alegrarmos por ver jovens felizes que se amam e que apostaram na vida a dois por esse mundo fora. Neste momento, é na Arábia Saudita que eles vão trabalhar... Era por a família ser importante que fazíamos o sacrifício de irmos para a neve e frio polacos para conhecermos a família da nossa nora.  Da nossa parte, bem nos preparámos... Mas não foi possível!

Boas Festas 21.jpg

Assim, é da Amora que envio um abraço de amizade e de esperança a todos os que passam pelo "ANIMUS SEMPER", desejando-vos muita saúde, muita felicidade e muita paz entre todos. Vale a pena ter fé e esperança em melhores dias, confiando na luz do Menino Jesus a iluminar a nossa caminhada, mesmo que ela já seja trôpega...

Boas Festas de Natal do António Henriques

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Visitei Malta

É verdade! Mesmo em tempo de pandemia pudemos visitar Malta. Arrastados por filho e nora, pudemos gozar cinco dias a olhar deslumbrados para as belezas naturais e o património cultural classificado da Unesco em Malta. O facto de este país estar também com 82% de população vacinada deixava-nos alguma segurança, acrescentada pelas máscaras que lá se usavam nos espaços fechados.

Já tínhamos ouvido falar daquele pequenino país, mas com esta visita os olhos ficaram cheios de riqueza, de cor, de beleza, que vão perdurar por muito tempo. Passados estes poucos dias, o olhar para as fotos que tirámos enche-nos de alegria, majorada com as caras familiares com quem convivemos, o que, nos dias que correm à mercê do distanciamento social, mais nos envaidece!

País pequenino, com uma população de menos de 500.000 habitantes espalhados por três ilhas (Malta, Gozo e Comino), é um repositório histórico de muitas culturas, desde os Fenícios até à atualidade. Lá deixaram vestígios os gregos, romanos, árabes (na língua de 870 a 1090), italianos (o condado da Sicília dominou Malta por muitos séculos). Em 1518, sob o império de Carlos V de Espanha, foi cedida aos cavaleiros da Ordem Hospitalar de São João de Jerusalém, que tinham sido expulsos de Rodes pelos otomanos. E é esta Ordem Militar que governa a ilha até ao séc. XIX. Nos tempos modernos, foram os Ingleses (1800) que se assenhorearam do território até 1964, quando Malta conseguiu a independência. Atenção: não posso deixar de referir a ligação da Ordem de Malta às Cruzadas dos séculos XII e XIII e à proteção dos peregrinos que se dirigem à Terra Santa, pois é esta a sua principal missão.

E de história já chega...

Então, o que é que nós vimos? Um território onde predominam as planícies, com alguma vegetação e muita pedra. Para cultivar a terra, muitas pedras e pedrinhas foram retiradas e aproveitadas para fazer muros. Até me lembrei das videiras do Pico que crescem entre paredes de muita pedra!

Espanta também a cor do mar; aquele azul tão carregado fez-me lembrar o mar das ilhas gregas, e a cor dos tinteiros da tinta Ink que enchia os nossos aparos quando jovens.

O mar é o elemento predominante. Ele entra pela cidade de La Valeta, entrecortada de baías e enseadas, que mais parecem canais (ai a nossa Aveiro!), agora cheios de marinas com iates e veleiros.

E as construções? Encontrámos uma cidade bem conservada, com a sua parte alta muralhada, mas leve e airosa nos palácios, jardins e outros monumentos. As ruas estreitas apelam à sua antiguidade (não passou por lá o Marquês de Pombal!); por isso, o trânsito é difícil, ainda mais porque não se paga estacionamento. Olhamos para aquelas casas e extasiamo-nos com a solidez dos edifícios em pedra calcária, a beleza das linhas que lhes confere um ar senhorial e ainda o galanteio daquelas varandas maltesas pintadas de azul, verde ou amarelo.

Tinta, para além das varandas, não se nota nos edifícios. Só nas janelas e portas, muito altas, encimadas por um semicírculo pintado ou em ferro forjado.

Igrejas, muitas, quer em Malta quer em Gozo (não vimos Comino). Predomina o barroco, embora haja também edifícios clássicos do séc. XVI, revestidos embora com as riquezas do barroco.

As esplanadas abundam e é muito agradável beber um café naquelas grandes esplanadas rodeadas de riquezas arquitetónicas, como na Triq Ir-Repubblika, uma larga avenida para peões junto da Catedral de S. João Batista e do Tribunal. Disse “Triq” para verem logo como é difícil a língua maltesa.

Também senti muita alegria a passear pelos campos de Gozo, olhar para grutas, fotografar catacumbas com muita história, saborear iguarias locais, próximas das italianas, e sentir-me turista nos dias que correm…

Agora, de muito especial foi a visita à Co-Catedral de S. João Batista em La Valeta. É outro mundo! No chão, nas paredes e no teto, não há um espaço vazio. Tudo merece atenção. Passeamos sobre muitas peças de mármore incrustado, de várias cores, letras, desenhos e brasões. As paredes estão revestidas de pinturas, esculturas, de múltiplas formas artísticas revestidas a oiro, em motivos vegetais, com a flor de lis e ainda a cruz de Malta das oito pontas. A abóbada e a cúpula prolongam este montão de arte e bíblia, especialmente em pinturas que se prolongam para o coro alto.

As fotos dizem mais que as minhas palavras.

Valeu a pena… Olhar, saborear, conviver, três ações que marcaram os nossos dias em Malta. Mas duas coisas são importantes: falar inglês e guiar o carro à inglesa, o que para mim não seria fácil.

António Henriques



segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A Expo de Ai Wei Wei

Faz parte das nossas distrações de férias a visita a alguma exposição. E quando são os próprios filhos a sugerir uma saída, nem se pensa duas vezes.

Desta vez, escolhemos Ai Wei Wei na Cordoaria Nacional para a primeira aventura, lá onde se mostra o grande e o minúsculo, o belo e o horrível, o suave e o abominável, numa enorme liberdade e variedade de expressões, todas elas a insistir na defesa do pensamento individual dentro de uma sociedade global, onde as nações não existem.

Chega a perturbar o arrojo daquele gigantesco barco feito de bambu ou aquele outro bote negro insuflado ao limite com imigrantes resgatados. Mas, por outro lado, olhamos para animais voláteis suspensos na sua textura angelical e fantasmagórica.

Depois, utilizando materiais portugueses (mármore, cortiça, azulejo), espalham-se naquele espaço esculturas perturbadoras (o artista sem cérebro, o rolo de papel em mármore ou ainda grandes painéis de azulejos azuis, com cenas de guerras, perseguições, fugas forçadas, vidas presas a uma tenda – “abram a fronteira”, “ninguém é ilegal”, lê-se repetidamente nos dois extremos da Cordoaria…

A liberdade de expressão circula por todo o lado, ora nas fotos (mais de 50) onde a mão de dedo levantado se atira a tudo o que se fotografa, seja monumento, rua, igreja, natureza, rio… numa intenção mais de destruição do que de fornicação.

Significativo é também um outro conjunto de cubos fechados, com cenas da prisão do artista, sempre acompanhado por dois soldados, mesmo quando dorme… Até nós somos forçados a curvar a cabeça ou a subir um degrau para olhar lá para dentro.

Não nos demorámos nos muitos vídeos expostos ao longo da exposição, que também valerá a pena olhar, para ouvir o próprio artista dissidente e perseguido pelo regime chinês a expor suas ideias.

Para não maçar os leitores, acrescento que a arte de Wei Wei é sempre comprometida, implicando os direitos humanos, as questões sociais e os regimes políticos. Na nossa história atual, para o artista ressaltam a liberdade de expressão, o direito dos refugiados e imigrantes a viver dignamente e a visão universalista contra o fechamento das tensões nacionalistas. Somos todos irmãos, concluo eu!

Crítico, contestatário, este artista espanta, encanta e incomoda. Achei-o demasiado negativo. Mas é curioso na sua humildade: «Minhas mensagens são temporárias… Outro vento há-de vir!»

NOTA: A título de curiosidade, este artista escolheu Portugal para viver, comprando casa em Montemor-o-Novo. 

António Henriques




segunda-feira, 3 de maio de 2021

Erros ou regra geral?

Em conversa telefónica com o amigo José Maria Lopes, um distinto revisor do Diário de Notícias, agora aposentado, falávamos nós dos erros que vamos ouvindo e lendo quase todos os dias.

Há casos em que começo a dar-me por vencido. Se todos ou quase todos insistem no uso da expressão errada, é sinal de que ela começa a ser prática corrente… E como é o falante na sua oralidade que vai transformando a linguagem para bem ou para mal, dou-me por derrotado e vou-me calando.

Vamos a exemplos:

 1 – Sénior – Seniores. O plural desta palavra raramente se diz e se escreve corretamente. Por influência do singular (sénior é uma palavra esdrúxula, com acento gráfico na terceira sílaba a contar do fim), quase todos entoam “séniores” à imitação do singular. Mas não está correto! Nenhuma palavra portuguesa tem acentuação na quarta sílaba a contar do fim. Mas aqui acontece esse dislate: sé-ni-o-res. No plural, devemos pronunciar “seniores”, como qualquer palavra grave. E sem qualquer acento gráfico, naturalmente.

2 – O clube tem ganho – ele tem limpo – o Estado tem gasto – a polícia tem preso

Todas estas expressões estão erradas!

Há realmente verbos com dois particípios, o regular e o irregular (ganhado/ganho, limpado/limpo, gastado/gasto, limpado/limpo, prendido/preso, imprimido/impresso, etc…). A regra diz que se usa o particípio regular com os verbos ter e haver, sendo o particípio irregular usado com os verbos ser e estar.

Cumprindo regras, assim se fala “em bom português”: O clube tem ganhado – ele tem limpado – o Estado tem gastado – a polícia tem prendido;

Assim também se devia dizer: eu havia ganhado – ele havia limpado, etc…

Com os verbos ser e estar dizemos: o jogo está ganho, foi ganho; a casa é limpa, está limpa, o dinheiro é gasto, o livro já está impresso…

Este é mais um erro que está a tornar-se prática normal. A forma irregular (ganho, limpo, etc.) tem ganhado estatuto de forma única. Que havemos de fazer?

3 – O terceiro erro a apontar, embora menos frequente, tem a ver com as formas verbais que se podem confundir com as expressões verbo + pronome pessoal. Ainda há poucos dias li no “zerozero.pt” esta frase:

«Paulo Sérgio regressou dos balneários decidido em que a sua equipa vira-se o resultado» (https://www.zerozero.pt/news.php?id=321175)

Em bom português, há aqui dois erros;

A - “decidido em que…” não é português correto. O verbo decidir pede a preposição “a”: decidido a que a sua equipa…, como se diz “decidido a fazer” (e não “decidido em fazer”);

B – Mais frequente é o segundo erro: «que a sua equipa vira-se o resultado», como se aqui houvesse duas palavras!

Querem ver outros casos semelhantes? – “Salvador, realizas-te o meu sonho!” – “Falhas-te porque olhas-te para a frente” - “Nós sempre lava-mos os pratos”…

Em todas estas expressões, só temos uma palavra, que é uma simples forma verbal. O hífen aqui não se pode usar: virasse, realizaste, falhaste, olhaste, lavamos.

Se temos dúvidas, passemos a expressão para a negativa, vendo o que acontece:

- quando temos duas palavras (verbo+pronome pessoal), colocando o “não”, o pronome vem para trás do verbo. Ex. hoje salvas-te – hoje não te salvas! /Vira-se o resultado – não se vira o resultado…

Caso o pronome não salte para trás do verbo, é sinal que só há uma palavra (sem hífen) e por isso diz-se: não virasse, não falhaste, não olhaste, não lavamos, etc.

Assim se escreve em bom português”!

António Henriques

quarta-feira, 31 de março de 2021

Ninguém se salva sozinho

Ando nos últimos dias com este pensamento na cabeça e, nem sei porquê, a qualquer hora do dia e nas mais diversas circunstâncias, ele se repete sem clara justificação…
Será já reflexo do ensimesmamento a que o vírus nos remeteu? Será já um grito a empurrar-me para os outros, a convencer-me da importância da comunhão com familiares, amigos e todos os que, incógnitos, contribuem para me facilitar a vida?
Realmente, os últimos tempos têm sido pródigos a experimentar o valor de muitos préstimos que me facilitam os dias.
Preciso de produtos do supermercado? Vou à Internet, faço uma lista e daí a umas horas estão a tocar à campainha para me entregarem os alimentos. Preciso de comprar um livro? É tudo simples: sem sair de casa, encomendo e daí a dois ou três dias aqui tens o pedido. O mesmo acontece com os ténis que calço, com o vinho que bebo, a comida para os meus dois gatos e com mais outras circunstâncias de que se tece a vida. Só é pena que ainda tenha de sair para resolver o que a Internet e o telefone não me resolvem. Vejam como um vírus me está a alterar hábitos através do confinamento obrigatório…
E agora olho para o circuito comercial que se estabelece para solucionar as minhas necessidades. Quantas caras anónimas se mexem e contribuem para o meu bem-estar! E não é só lá fora. Também aqui, em casa, eu começo a dizer: obrigado, Antonieta, por me facilitares a vida!
É esta rede de relações que me deixam muito agradecido e que eu transporto para novas realidades. Também eu devo ajudar os outros. Também eu devo facilitar-lhes a vida. E cada vez que o faço alegro o outro e alegro-me a mim próprio. Se calhar, muita gente envinagrada que há por aí é assim porque não ajuda os outros…
A minha Páscoa também se faz com este esforço em construir vida, colaborar com os outros, dar voz às boas causas, mostrar valores escondidos dos colegas, impulsionar projetos que vão satisfazer os que neles estão implicados.
Às vezes erro? Só não erra quem nada faz… E eu não vou por aí!

António Henriques

sábado, 13 de março de 2021

A raia de Alcoutim

Quando eu era criança, aparecia muito raramente na aldeia alguém a quem chamavam contrabandista. Lembro-me da bombazine e das gorras, aqueles barretes sem pala, ajustados à cabeça das crianças, com que nos protegíamos do sol e do frio e que só eles vendiam. Mal sabia eu que um dia alguém me colocaria nas mãos um livro a versar sobre essa economia clandestina que alimentava bocas de gente pobre, a viver de uma agricultura rudimentar, que precisava de outros apoios e audácia para melhorar as suas condições de vida.

Estou a falar do livro do meu colega e amigo, José Dias Rodrigues, a quem devo algumas das primeiras lições de Informática, que me iniciaram neste novo alfabeto a que muitos da minha idade resistem, ficando agarrados à imprensa de Gutenberg.

Publicou ele “A raia de Alcoutim” em setembro passado, numa homenagem à população da sua terra natal. E, como lhe prometi, aqui deixo a minha apreciação ao seu trabalho.

 

1 – Uma história

O autor, que logo no início afirma que não tem «qualquer pretensão de natureza literária», e quer apenas «contar uma história», não é assim tão destituído de conhecimentos, pois a sequência das páginas revela uma real ordenação de acontecimentos, uma descrição mínima de personagens e uma exaustiva abordagem dos ambientes e fainas agrícolas que leva o leitor a agarrar-se a esta história. Curiosamente, é ele que diz que «os relatos não são totalmente verdadeiros, mas também não são completamente falsos». Sim, é esta verossimilhança dos factos que nos prende e leva a imaginar que de acontecimentos reais se trata.

A nível literário, pensando nas técnicas da narração, quero ainda realçar estes pormenores: - logo no início, surge um facto inesperado – o ribombar de tiros, que nos prende pelo sofrimento das personagens e nos faz perguntar como é que eles agora vão resolver o problema; - depois, é a intriga que acompanha todas as páginas até ao fim do livro – quem te roubou o café? – foi o amante da Rosa? – quem será o amante da Rosa? - e mesmo nas últimas páginas ainda o problema não tem resolução definitiva, ficam dúvidas…

Finalmente, a nível literário, de vez em quando surgem imagens de fino recorte, como ver os homens a «deslizar como cobras ao longo do trilho irregular» (pág. 13) ou «ao ver a farda à sua frente, a adrenalina irrigou-lhe o corpo todo, como se uma injecção lhe tivesse sido aplicada…» (pág.25) ou ainda outra expressão: «José Cachopa ficou capaz de vida não ter! A sua cabeça cedeu como se uma onda gigante lhe tivesse rebentado dentro… (pág.170).

 

2 – O conteúdo

O autor, com a sua história, fixa-se especialmente naqueles 14 km da “raia de Alcoutim”, aquela linha imaginária ao longo do rio Guadiana, alongada para muito território espanhol,  por onde circula a vida de muita gente a viver do campo e com os mais corajosos a aproveitar-se da proximidade do território espanhol para reduzir a sua penúria através do contrabando, uma atividade perigosa por ser ilegal, não ter regras e deixar o indivíduo à mercê de um tiro, de uma prisão prolongada, dos imprevistos do negócio ou mesmo de uma traição.

O contrabando não enriquecia ninguém, mas ajudou alguns a viver melhor, situando-se entre os anos 30 e a década de 60 do século passado. Nos anos 60, outros fenómenos mais gerais alteraram a vida de muitos portugueses. O autor refere-se à emigração para fora (França/Alemanha) e mesmo para dentro de Portugal - os grandes centros urbanos e industriais - e ainda a guerra do Ultramar. Daí o subtítulo do seu livro: “Contrabando, emigração e outras narrativas”.

Esta realidade sociológica vai aparecendo ao longo das páginas através das duas personagens principais, o José Cachopa e o Manuel Roberto, um a viver do lado de cá e o segundo, depois do contrabando, a fixar-se no território espanhol, como agricultor a tomar conta de uma “finca”, já que a guerra de Espanha (1936-39) despovoara os campos na sua sanha militar de destruição, por morte de muitos e por fuga de outros que se sentiam perseguidos.

Ao longo das páginas, vamos assistindo às peripécias da vida destes dois amigos, que até se ajudam nas caminhadas com cinco ou seis homens que o José Cachopa leva consigo, carregando cada um 30 kg de café e deslocando-se para a Espanha numa distância de 30 km, onde o amigo o apoia e facilita os contactos. Mais tarde, os dois embarcam na aventura da emigração, vendo-os a trabalhar em fábricas na Alemanha por uns anos e regressando mais tarde para o seu Alcoutim, com um pecúlio que os ajuda a viver melhor os seus dias.

O autor contextualiza o desenrolar desta história local com a referência às circunstâncias políticas de Portugal, Espanha e Europa que também se vão alterando e provocando mudanças na vida das pessoas. A guerra civil de Espanha, a guerra no Ultramar português, o Maio de 68, tudo influenciou as mentalidades e os projetos pessoais. Achei curiosa a referência à tendência de os alcoutinenses irem para a Marinha ou a Guarda Fiscal, como maneira de fugirem à mobilização para a guerra nas colónias.

 

3 – Considerações especiais

- Regionalismos: relevo em primeiro lugar o uso de uma linguagem regionalista, só acessível a quem a usou por muitos anos, o que enriquece a verdade da história. É o vocabulário técnico do dia a dia, em itálico ou em nota de rodapé, que muita graça confere ao texto.

- Riqueza toponímica: o autor esforça-se por dar nome a cada palmo de terra, quer em Portugal quer em Espanha, como quem conhece bem o terreno. Enumera os treze postos da Guarda Fiscal na região com 92 homens, cada um com guarnições diferentes, dá nome próprio às empresas da região e até à Famel, a motorizada que o tocador do fole (concertina) usava para animar os bailes. Percorre as muitas “fincas” de Espanha por onde se espalharam portugueses com nome próprio. Já não é assim tão pormenorizado quando envia os seus personagens para a Alemanha, de onde ficamos com poucas referências.

- Realismo nas descrições: tenho que dizer que me impressionou o pormenor com que o autor descreve a habitação do casal que vai viver numa “finca” em Espanha, Tariquejo, ou como ele conhece bem estes negócios escuros, sem leis, as manhas dos recetadores, dando-se ao trabalho de fazer todas as contas no deve/haver do café, dos quilos de amêndoa, bombazine e alpercatas que trazem de volta e no pagamento aos voluntários que auxiliaram o contrabandista. É até hilariante a descrição dos passos para preencher os impressos dos candidatos à emigração legal para a Alemanha. Como também é com bonomia que o trabalho na fábrica da Alemanha é tratado como «uma brincadeira de gaiatos»!

E já me alonguei em considerações. Deixo os parabéns ao autor e o estímulo para continuar a valorizar a sua terra, os Balurcos, a que me ligam amizades inesquecíveis. Vou recrear-me um dia destes com a leitura de outro livro do José Dias Rodrigues - Ecos do passado em Balurcos”(2019), outra produção escrita a valorizar a memória da sua terra e do seu concelho.

 

António Henriques

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

O comboio pequenino

Há poucos dias, fez anos o Aníbal Henriques, meu primo direito… Este nome está a puxar pela minha memória. É que muitas coisas aconteceram na vida dos dois que não esquecem de todo. Outras desaparecem no turbilhão do armazenamento mental, ou porque se trocaram as caixas ou porque estavam muito cheias e começaram a deitar fora. Na minha idade, acontece!
Os nossos pais nasceram na Ribeira do Vale da Ursa, ali perto dos Cunqueiros e Isna de Oleiros, para vocês localizarem, em plena zona do Pinhal beirão.
Da aldeia tenho poucas memórias, mas ainda me lembro das camadas de neve que enregelavam os pés. Dizia o meu pai: - “vem atrás de mim e põe os teus pés nas pegadas dos meus para andares melhor…” Mesmo assim, com dificuldade eu enterrava as botas naqueles buracos fundos que meu pai deixava e lá ia caminhando. Eram uns bons quilómetros. Outra recordação é o vinho morangueiro, das uvas americanas (assim se dizia) de pele rija que sempre alegravam os dias… A agricultura era difícil, só com encostas de sobe e desce, embora nunca faltasse a água. Bem diferente era o meu Ripanso, de terras mais planas e férteis. 
De lá saíram os nossos pais quando a tropa os chamou. Meu pai aprendeu, entretanto, o ofício de carpinteiro casando para o Ripanso e meu tio, depois da tropa, foi servir o país na GNR, arrastando a esposa da mesma aldeia e indo morar para a Sertã.
Assim, nas férias, por mais de uma vez, pude ir gozar uns dias à Sertã, no tempo em que o quartel da GNR era na Alameda da Carvalha, um antigo convento hoje transformado em hotel. Uns anos mais tarde, aconteceu o mesmo em Santarém, para onde se mudam os pais do Aníbal. Convidam-me para ir até à Scalabis, onde pela primeira vez pude passear pelas Portas do Sol, admirar o gótico da Graça e espraiar os olhos pelas maravilhas do rio Tejo e da lezíria.
Hoje, pelo telefone, disse ao Aníbal que ele era um gaiato ao pé de mim, nos seus 67 anos. Mais gaiato era quando se batizou e arranjou como padrinho o meu pai. Nasceu assim outro Aníbal. Mais uma razão para maiores aproximações. E padrinho que se preze não esquece o afilhado. Talvez como agradecimento pelas atenções que os seus pais tiveram comigo, quando o Aníbal fez o 2.º ano liceal, meu pai convidou-o para ir passar uns dias ao Estoril, para onde tinha ido viver este carpinteiro que passou a chamar-se Mestre Aníbal, em terras de progresso e de turismo. 
E agora começa a aparecer o tal comboio do título.
Como é que o Aníbal vai da Sertã para o Estoril? Trabalhava eu no Colégio de S.to António em Portalegre e já tinha comprado uma Vespa de 250cm, para verem aquela potência! E estávamos em julho de 1966.
Passo pela Sertã, pego no embrulho da roupa e no gaiato e ala para Lisboa por essas estradas fora (se calhar nem a palavra autoestrada existia!). Em Alpiarça, foi a primeira e única paragem para almoçar. Mas soubemos escolher um restaurante em que pudéssemos ver na TV o memorável jogo do Mundial de Futebol 66 – o Portugal-Coreia do Norte – 5 a 3.
O primo Aníbal, encantado com a viagem de moto por terras desconhecidas, deliciou-se com o bife com batatas fritas (pois então, o que havia de ser?!) e esperámos pelo jogo. Ora bolas, meia hora depois já Portugal perdia por 3-0… E quem aguenta o Aníbal? Cheio de nervoso miudinho, diz: “Primo, vamos embora, não quero ver mais!” O Tonho, mais calmo, insiste para esperar um bocadinho, que o Eusébio ainda pode mexer com o resultado. E mexeu mesmo. Mal chegou o 3-1, o Aníbal volta a olhar para o jogo, que aos 90 minutos terminou nos memoráveis 5 a 3.
Saímos de Alpiarça cheios de alegria e capazes de galgar seca e meca, por vias e terras desconhecidas, que era a primeira vez que eu usava a minha carta de moto por aquelas paragens, mesmo em Lisboa. Carta de moto que me deixou mal em Évora, pois tive de repetir o exame por não saber fazer oitos e o pneu ter batido no lancil da estrada (também tive de chumbar uma vez na vida, para ser igual aos outros, não é?)…
Ao chegar a Lisboa, eu já tinha magicado como iria ultrapassar aquela grande cidade. Desviava de Sacavém para Moscavide e enfiava pela rua junto do rio, sem nunca me perder dentro do labirinto citadino. 
E assim foi: ia explicando ao Aníbal as poucas coisas que eu já tinha visto na capital, passámos pelo Terreiro do Paço, Cais do Sodré, Alcântara, sempre em frente e havemos de chegar ao Estoril.
Às tantas, grita o Aníbal: “Primo, olhe aquele comboio pequenino”… Eu olhei para o do Cais do Sodré, mas esse já ele conhecia. O que era novidade era o elétrico de Belém. E à falta de outro nome, vá de chamar-lhe comboio! Uns dias mais tarde, ainda andámos nele pelas ruas de Lisboa. Agora, é quase só para turistas, se o Covid deixar!
Nunca mais esqueci este acontecimento, que terá sido muito especial para não desaparecer da memória, quando nós sabemos que ela começa a transbordar e a selecionar o que lá fica encaixado.
Estive a reviver, que quer dizer “voltar a viver”. E neste presente estéril que o Covid provoca, talvez seja a melhor maneira de sentir o prazer dos dias.

António Henriques