Quando eu era criança, aparecia muito
raramente na aldeia alguém a quem chamavam contrabandista. Lembro-me da
bombazine e das gorras, aqueles barretes sem pala, ajustados à cabeça das
crianças, com que nos protegíamos do sol e do frio e que só eles vendiam. Mal
sabia eu que um dia alguém me colocaria nas mãos um livro a versar sobre essa
economia clandestina que alimentava bocas de gente pobre, a viver de uma
agricultura rudimentar, que precisava de outros apoios e audácia para melhorar as
suas condições de vida.
Estou a falar do livro do meu colega
e amigo, José Dias Rodrigues, a quem devo algumas das primeiras lições de
Informática, que me iniciaram neste novo alfabeto a que muitos da minha idade
resistem, ficando agarrados à imprensa de Gutenberg.
Publicou ele “A raia de Alcoutim” em
setembro passado, numa homenagem à população da sua terra natal. E, como lhe
prometi, aqui deixo a minha apreciação ao seu trabalho.
1 – Uma história
O autor, que logo no início afirma
que não tem «qualquer pretensão de natureza literária», e quer apenas «contar
uma história», não é assim tão destituído de conhecimentos, pois a sequência
das páginas revela uma real ordenação de acontecimentos, uma descrição mínima
de personagens e uma exaustiva abordagem dos ambientes e fainas agrícolas que
leva o leitor a agarrar-se a esta história. Curiosamente, é ele que diz que «os
relatos não são totalmente verdadeiros, mas também não são completamente
falsos». Sim, é esta verossimilhança dos factos que nos prende e leva a
imaginar que de acontecimentos reais se trata.
A nível literário, pensando nas
técnicas da narração, quero ainda realçar estes pormenores: - logo no início,
surge um facto inesperado – o ribombar de tiros, que nos prende pelo sofrimento
das personagens e nos faz perguntar como é que eles agora vão resolver o
problema; - depois, é a intriga que acompanha todas as páginas até ao
fim do livro – quem te roubou o café? – foi o amante da Rosa? – quem será o
amante da Rosa? - e mesmo nas últimas páginas ainda o problema não tem
resolução definitiva, ficam dúvidas…
Finalmente, a nível literário, de vez
em quando surgem imagens de fino recorte, como ver os homens a «deslizar como
cobras ao longo do trilho irregular» (pág. 13) ou «ao ver a farda à sua frente,
a adrenalina irrigou-lhe o corpo todo, como se uma injecção lhe tivesse sido
aplicada…» (pág.25) ou ainda outra expressão: «José Cachopa ficou capaz de vida não ter! A sua
cabeça cedeu como se uma onda gigante lhe tivesse rebentado dentro… (pág.170).
2 – O conteúdo
O autor, com a sua história, fixa-se
especialmente naqueles 14 km da “raia de Alcoutim”, aquela linha imaginária ao
longo do rio Guadiana, alongada para muito território espanhol, por onde circula a vida de muita gente a viver
do campo e com os mais corajosos a aproveitar-se da proximidade do território
espanhol para reduzir a sua penúria através do contrabando, uma atividade
perigosa por ser ilegal, não ter regras e deixar o indivíduo à mercê de um
tiro, de uma prisão prolongada, dos imprevistos do negócio ou mesmo de uma
traição.
O contrabando não enriquecia ninguém,
mas ajudou alguns a viver melhor, situando-se entre os anos 30 e a década de 60
do século passado. Nos anos 60, outros fenómenos mais gerais alteraram a vida
de muitos portugueses. O autor refere-se à emigração para fora (França/Alemanha) e mesmo para dentro de Portugal - os grandes
centros urbanos e industriais - e ainda a guerra do Ultramar. Daí o subtítulo
do seu livro: “Contrabando, emigração e outras narrativas”.
Esta realidade sociológica vai
aparecendo ao longo das páginas através das duas personagens principais, o José
Cachopa e o Manuel Roberto, um a viver do lado de cá e o segundo, depois do
contrabando, a fixar-se no território espanhol, como agricultor a tomar conta
de uma “finca”, já que a guerra de Espanha (1936-39) despovoara os campos na
sua sanha militar de destruição, por morte de muitos e por fuga de outros que
se sentiam perseguidos.
Ao longo das páginas, vamos
assistindo às peripécias da vida destes dois amigos, que até se ajudam nas
caminhadas com cinco ou seis homens que o José Cachopa leva consigo, carregando
cada um 30 kg de café e deslocando-se para a Espanha numa distância de 30 km,
onde o amigo o apoia e facilita os contactos. Mais tarde, os dois embarcam na
aventura da emigração, vendo-os a trabalhar em fábricas na Alemanha por uns
anos e regressando mais tarde para o seu Alcoutim, com um pecúlio que os ajuda
a viver melhor os seus dias.
O autor contextualiza o desenrolar
desta história local com a referência às circunstâncias políticas de Portugal,
Espanha e Europa que também se vão alterando e provocando mudanças na vida das
pessoas. A guerra civil de Espanha, a guerra no Ultramar português, o Maio de
68, tudo influenciou as mentalidades e os projetos pessoais. Achei curiosa a
referência à tendência de os alcoutinenses irem para a Marinha ou a Guarda
Fiscal, como maneira de fugirem à mobilização para a guerra nas colónias.
3 – Considerações especiais
- Regionalismos: relevo em primeiro lugar o uso de uma linguagem regionalista, só
acessível a quem a usou por muitos anos, o que enriquece a verdade da história.
É o vocabulário técnico do dia a dia, em itálico ou em nota de rodapé, que
muita graça confere ao texto.
- Riqueza toponímica: o autor esforça-se por dar nome a cada palmo de terra, quer em Portugal
quer em Espanha, como quem conhece bem o terreno. Enumera os treze postos da
Guarda Fiscal na região com 92 homens, cada um com guarnições diferentes, dá
nome próprio às empresas da região e até à Famel,
a motorizada que o tocador do fole
(concertina) usava para animar os bailes. Percorre as muitas “fincas” de
Espanha por onde se espalharam portugueses com nome próprio. Já não é assim tão
pormenorizado quando envia os seus personagens para a Alemanha, de onde ficamos
com poucas referências.
- Realismo nas descrições: tenho que dizer que me impressionou o pormenor com que o
autor descreve a habitação do casal que vai viver numa “finca” em Espanha,
Tariquejo, ou como ele conhece bem estes negócios escuros, sem leis, as manhas
dos recetadores, dando-se ao trabalho de fazer todas as contas no deve/haver do
café, dos quilos de amêndoa, bombazine e alpercatas que trazem de volta e no pagamento
aos voluntários que auxiliaram o contrabandista. É até hilariante a descrição
dos passos para preencher os impressos dos candidatos à emigração legal para a
Alemanha. Como também é com bonomia que o trabalho na fábrica da Alemanha é
tratado como «uma brincadeira de gaiatos»!
E já me alonguei em considerações.
Deixo os parabéns ao autor e o estímulo para continuar a valorizar a sua terra,
os Balurcos, a que me ligam amizades inesquecíveis. Vou recrear-me um dia
destes com a leitura de outro livro do José Dias Rodrigues - Ecos do passado
em Balurcos”(2019), outra produção escrita a valorizar a memória da sua
terra e do seu concelho.
António Henriques