sábado, 23 de dezembro de 2017

Voltando à Madre de Deus


Já aqui expus as maiores impressões que me causaram a visita guiada à Igreja da Madre de Deus, ali em Xabregas. E, ao lado, encontra-se o Museu do Azulejo, um museu didáctico a que muitos recorrem para apreciar a rica azulejaria portuguesa, que um dia também abordarei.
Hoje, apetece-me falar mais do Coro, um espaço sobranceiro à Igreja, reservado, onde as clarissas assistiam à Missa e rezavam o Ofício Divino. Continua a impressionar a riqueza e mesmo a excrescência da talha dourada e ainda o número elevado de pinturas que adornam o espaço. É o barroco em todo o seu esplendor (vide foto).
Coro.jpg
1 - As monjas ocupavam cada uma o seu lugar, que se caracterizava por ter um assento articulado, que se levantava para que a ocupante pudesse estar de pé no mesmo lugar. Ao levantar o assento, este tinha uma pequena tábua colada na horizontal que permitia que a freira pudesse descansar, embora parecesse que estava de pé. E o cadeiral tinha ainda dois braços laterais em que se podiam apoiar os cotovelos. Tudo para que o muito tempo que as freiras passavam em oração não fosse demasiado incómodo.
Mas eu notei que o guia, ao mostrar como aquilo funcionava, ficava com os braços muito acima do encosto. Para ele, os braços do cadeiral eram baixos. Pudera! Passaram dois séculos e as pessoas são cada vez mais altas!...
2 - Ao centro, em cima de um tapete, podemos ver uma estante de coro, necessária para se cantar com o livro à distância, que era coisa que não abundava ao tempo. Não vejo que fosse fácil esta leitura àquela distância, embora os livros do tempo tivessem grandes medidas, mais que meio-metro de altura!Madre Deus.jpg
Madre Deus1.jpg3 – Muito gostam os nobres de conviver com as freiras, não... queria dizer com os santos, para que o seu nome e a sua efígie perdurassem no tempo e na eternidade. Ao fundo, do lado esquerdo, lá se encontra uma pintura com o Rei D. João V ao lado de S. João Batista e, do lado direito da foto, a imagem de D. Leonor com a S. Clara de Assis.
4 – Durante a visita, alguém chamou a atenção para a nudez do altar-mor, que se pode ver noutra foto. Sem os arrebiques do barroco, é constituído apenas por pedras de duas cores e formas simples. Há explicação? Claro: aquelas pedras nuas eram revestidas por belos frontais de altar, muitas vezes de tecidos caros, brocados de seda entretecida de ouro ou prata, até com relevos... À falta deles, ou por moda do tempo, usavam-se ricas peças de azulejaria, como podemos admirar esta no Museu do Azulejo.
Foram notas soltas, impressões de uma visita, que podem interessar a alguém.
António Henriques

NOTA: Por cima da abertura que, no coro, permitia a visibilidade do altar-mor, há um quadro gritantemente ornamentado, de louvor ao SS. Sacramento. Podem observar melhor a foto, assim como ver mais uma vez a imagem do corpo e da capela-mor da Igreja. Acrescento ainda um frontal de altar em azulejo, com notórias influências orientais.













segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Visita ao Mosteiro da Madre de Deus

Não é uma questão de neura, pois a vida não me conduz para aí, graças a Deus.
Tecto em abóbada com caixotões pintados 
Foi um convite que nos surgiu pelo Facebook. Lembravam-nos que havia uma visita guiada ao mosteiro da Madre de Deus, ali para Xabregas, na manhã deste domingo.
Consultada a família, convidados uns amigos, lá nos inscrevemos. As sensações melhores vieram no final da visita. Como foi agradável passar uma manhã embrenhados em cultura, regalando os olhos e os ouvidos com quadros e histórias algumas bem conhecidas e outras nem tanto... Mas esta sensação de deixar o quotidiano, esquecer a casa e os gatos por umas horas, limpar a cabeça de preocupações, levanta o ânimo, descansa o espírito e carrega-nos de energia pacífica! Foi isto que ouvi também aos meus companheiros de viagem...
O mosteiro integra o Museu do Azulejo, já nosso conhecido e bem estudado há uns anos atrás, e os espaços dedicados mais às funções religiosas e de habitação das freiras franciscanas clarissas que o habitaram desde o séc. XVI. Pessoalmente, eu não conhecia estas dependências maravilhosas, que me encantaram.  Os claustros, de contornos manuelinos ou pós-manuelinos, são sóbrios, como é próprio dos espaços femininos das clarissas.
Mas nas outras dependências, a riqueza exibida não condiz com o rigor da Ordem Franciscana, sendo evidente o carinho que a realeza tinha por este património e ao qual dedicaram sempre muita atenção.
Sujeita a muitos trabalhos de restauração, sobretudo após o terramoto de 1755, notamos na Igreja notas do estilo gótico, do clássico (na capela-mor), mas é o barroco que mais impressiona, quer na profusão de talha dourada dos altares ou nos muitos quadros de pintura que ornam as paredes. Dá vontade de dizer que, se em Portugal o azulejo serviu para fazer as vezes das grandes tapeçarias e pinturas com que na Europa se forravam as paredes, ali ainda são as pinturas e a talha dourada que dominam, embora encontremos lá as paredes forradas com grandes painéis de tons azulados, típicos do séc. XVIII. E na pintura, fiquei preso ao quadro da Assunção e coroação da Virgem, que encima o arco que separa o corpo da igreja da Capela-mor, quase um Arco do Triunfo como em Paris, pintura esta do grande pintor Oliveira Bernardes, disse o guia.
Mais poderei dizer em dias seguintes. Por ora, recreiem-se com este pequeno vídeo, com música ao vivo!
António Henriques


quinta-feira, 16 de novembro de 2017

OS PRESÉPIOS DA PRAZERES

A Prazeres é minha irmã. Durante muitos anos viveu pelo mundo fora como Irmãzinha de Jesus em Fátima, Lisboa, Tunísia, Belém e Nazaré, sempre no meio de palestinianos que lhe entraram pelo coração adentro.
Nos últimos anos, com grandes problemas de saúde, porque a sua comunidade não lhe garantia grandes condições de vida, conseguiu acolher-se ao Lar das Irmãzinhas dos Pobres, ali em Lisboa, em Campolide, com acesso fácil a subir a dita Rua de Campolide, entrando no portão largo que se abre quando o carro se aproxima. 
Frequenta os encontros das suas Irmãzinhas, mas no seu dia-a-dia trabalha, trabalha para louvar a Deus e ser útil.
O resultado do seu trabalho está nestas fotos: centenas de pequenos e artísticos presépios, onde ela usa as lindas imagens em barro que também são confeccionadas em Fátima, na Fraternidade, para onde ela as envia para cozerem.
Chegado o mês de Novembro, o Lar do Velhinhos das Irmãzinhas do Pobres em Campolide faz uma grande exposição onde apresenta muitos artigos em muito bom preço, doados por amigos, e onde também estão à venda por preços irrisórios os presépios da Prazeres, cuja venda reverte totalmente para o dito lar.
Eu não os posso comprar todos!... Os leitores não quererão passar por lá para fazer uma obra de caridade? Eu acho que vale a pena... Por 2 ou 3 €, já trazem presépios!
AH




quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Coisas bonitas na Igreja

Esta vai sem foto, mas é muito importante para mim.
A missa deste domingo (12/11/2017) celebrou sobretudo a palavra de Deus, exaltada no que foi chamado o "Dia Paroquial da Bíblia", segundo recomendação do Santo Padre na Carta Apostólica que publicou no fim do Ano da Misericórdia.
O Sr. P. Geraldo nem fez homilia, pois a encenação que se representou foi bem uma rica homilia, que nos ia entrando pelos olhos dentro. Crianças da catequese iam aparecendo com símbolos bíblicos, a acompanhar um roteiro distribuído a toda a assembleia num folheto muito bem feito e íamos ouvindo e cantando que «a Palavra de Deus é Luz», ...«é Alimento», ...«é Água Pura», ...«é Paz», «...é Ressurreição», ...«é para ser anunciada» e, finalmente «a Palavra de Deus é JESUS CRISTO».
O que mais me tocou foi a distribuição de uma 20 Bíblias a crianças da Catequese. Uma a uma, aproximavam-se do Celebrante e ouviam uma breve mensagem do sacerdote, respondiam "Ámen" e seguiam para o seu lugar com aquele precioso tesouro. E não é que o celebrante foi capaz de dirigir a cada uma uma palavra diferente, muito directa, sem se repetir?
Fica este elogio, a pensar nestes meninos e meninas que não vão esquecer facilmente o que ouviram, tão pessoal foi.

António Henriques

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

A EXPOSIÇÃO DE MIRÓ

Fala-se tanto de Joan Miró... Por quê não hei-de ir até ao Palácio da Ajuda, aqui tão perto, para olhar para aquelas «oitenta e cinco pinturas, desenhos, esculturas, colagens e tapeçarias» que são propriedade do Estado português? Já fizeram correr tanta tinta aqueles trabalhos avaliados em milhões...
E fomos mesmo. Convidámos uns amigos para este passeio prazeroso e zarpámos para o Palácio Nacional, onde nós já vimos coisas bem interessantes: as extravagâncias da Joana Vasconcelos, os sons melodiosos do filho António Luís integrado no Coro de Câmara de Lisboa e ainda uma outra obra musical de que não me lembro bem...
Amálgama de materiais para dar forma e cor
Confesso que ia um pouco descrente, sem saber se ia gostar ou não. Mas a curiosidade era muita. Muita era também a frequência daquele espaço, sinal da fama que Miró arrasta nos nossos dias. À falta de guias que nos ajudassem a compreender aquela produção artística, íamos lendo todas as informações e olhando para as obras de Miró, muitas vezes sem nada perceber “como um boi a olhar para um palácio”.  
O que melhor compreendi foi a tentativa de Miró em trabalhar com todos os suportes da sua arte como se fossem uma novidade, dando-lhes novos sentidos e funções: uma linha podia ser um arame, a cor podia ser representada por fios de lã, um simples contraplacado rugoso, sem uma preparação do suporte, podia servir de base a uma pintura ou colagem, a tinta ou o guache podiam ser substituídos por pedrinhas... E porque não deitar fogo a uma tela, deixar actuar a sua energia e verificar o resultado final?
Suporte rudimentar com pedras coladas a centrar a atenção
Certo, certo é a liberdade com que Miró mexe nos materiais pictóricos e os leva ao extremo, chegando a pregar na tela o alguidar das limpezas ou a sua vassoura, numa visão tridimensional da sua obra...
Para André Breton, Miró era o maior surrealista do séc. XX. Frequentando Picasso e outros modernistas, para Miró a figura, seja humana ou material, tem de ser ultrapassada, sobre-realizada, restando uns pontos e umas linhas em que predomina o sonho, mais que a anatomia. Mestres no uso do desenho e da cor, os surrealistas abriram caminho a formas mais ousadas de expressão artística.

As obras presentes na Ajuda representam 60 anos de trabalho, em que as próprias tendências do artista vão variando, reduzindo-se cada vez mais a técnicas simples e de poucos recursos pictóricos.
Nas vésperas da Grande Guerra, vemo-lo a pintar figuras humanas de pescoço esguio e grandes cabeças, em que se pressente um ar assustador, ou desenhos que parece quererem sair do suporte sem lá caberem.
Intrigante, toda esta exposição. Saio de lá a pensar que outros vêem o que eu não vislumbro. Mas não deixo de admirar o equilíbrio, a graciosidade e mesmo a gradação de linhas e cores que vi nalguns quadros.

António Henriques





















sábado, 7 de outubro de 2017

UM NOVO ANO


O ano escolar marcou sempre a minha vida, mais que o ano civil. Foram muitos os anos como aluno e como professor, o que provoca alterações de percepção nas vivências diárias.
Por isso, chegado a Outubro, parece que é tempo de renovar projectos, olhar mais para a frente, decidir como se vai viver cada dia... Nunca fui pessoa determinada a cumprir horários à risca, de modo a ter sempre a corda esticada. Sempre optei por uma certa dose de lassidão, para não perder o gosto de viver, a alegria dos momentos de contemplação ou o sabor do «dolce far niente»! Ainda para mais agora, já perto dos oitenta, quando até o físico convida mais ao repouso, a algum torpor, sem falar já dos achaques que sobrevêm repetidamente sem os conseguirmos dominar com facilidade...
Este ano então foi mesmo excepcional. Partem-se braços em queda abrupta, atacam-nos as ciáticas, gastam-se horas e dinheiro em hospitais, dentistas, osteopatas e quiropráticos, que são coisas de nos tirar a paciência e boa disposição... Mas, enfim, sobrevivemos, o que é muito bom... E vontade não falta para deslocar o olhar destes polos negativos e fixar sobretudo o lado brilhante da vida, que nos dá mais sabor!
Assim, continuando na disposição de colaborar com os outros, pertencer à comunidade, já me vem à cabeça a preocupação do que hei-de propor para as aulas de Português na Unisseixal, por exemplo. Naturalmente, a prática do ano anterior vai ajudar, sobretudo para não ir para além da chinela, pois as pessoas querem sobretudo viver momentos felizes e bem-dispostos, aprendendo por gosto e com gosto, sem forçar demasiado.... Vou olhar para a avaliação dos meus alunos, nas críticas e propostas que me fizeram, e apresentarei temas para eles me dizerem depois como vamos viver aqueles interessantes 90 minutos semanais.
Vou reduzir as minhas aprendizagens, ficando apenas com a ginástica duas vezes por semana, para poder sair de vez em quando e gozar um pouco mais. Assumo também dar uma ajuda aos alunos pobres no Café Cristão, em explicações aos 2.º e 3.º ciclos. E vou participar também no apoio ao “site” da Unisseixal, que a Luísa Bernardo precisa e merece a ajuda de muitos.
Quero ler mais, sair de casa mais vezes para passear, ir ao cinema, a exposições e mesmo frequentar cursos outros que me elevem os conhecimentos.
O grande plátano de Portalegre, símbolo de vitalidade...
O apoio familiar é uma preocupação diária, assim como é diária a atenção ao blogue ANIMUS SEMPER, de que sou responsável junto da associação dos antigos alunos dos seminários.
E chega para me encher os dias...
Viver em tranquilidade com as minhas amizades – um voto, um lema, um imperativo.
VIVER A VIDA...

António Henriques

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

UMA VISITA

À CAPITAL DOS DINOSSAUROS


Esta pode ser uma hipótese para uma escapadinha, aqui a 70 km de Lisboa. A Lourinhã aqui tão perto e nós não a conhecemos... E se a conhecíamos, iremos estranhar muito as novas atracções que vão interessar os turistas a partir de hoje.
Quando a visitámos, ainda estava engalanada com os enfeites de uma festa local e o nosso objectivo era sobretudo o Museu. Soubemos que era decerto a última vez que ali entrávamos, disse o funcionário, pois o Museu ia ser deslocado brevemente para novas instalações, por certo mais dignas. O espólio que ali se amontoa vai brilhar mais em espaços mais amplos. Naquele espaço, convivem as peças de um museu regional, memória das muitas actividades económicas a que se dedicavam as gentes daquela região do Oeste, e os achados paleontológicos da era dos dinossauros, que realmente precisavam de outro ambiente para se mostrarem melhor.

Das mostras das profissões antigas, muitos objectos expostos chamaram a atenção. Mas, para abreviar, lembro os elementos com que se extraía a resina. Naquelas ferramentas, não faltava a machadinha para tirar mais uns centímetros de casca do pinheiro e a garrafinha do ácido para fazer que a resina escorresse para a malga. Tive ainda a oportunidade de lembrar os nomes dos muitos instrumentos do carpinteiro, que meu pai manuseava com mestria, como, por exemplo, a garlopa, o trado, a plaina... Mas parece que não consta nenhuma profissão que ali não se apresente, pelo que vale uma visita bem ilustrativa.
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A secção dos dinossauros encontra-se muito compacta e há muitos achados que nem sequer podem aparecer por falta de espaço. Mas, para surpresa minha, estava eu a escrevinhar estas linhas quando descubro que neste 8/08/2017 se inaugura na Lourinhã uma grande mostra de 20 modelos de dinossauros em tamanho real, numa iniciativa apelidada de «Dinossauros Saem à Rua» e que ficará patente até meados de Setembro. E nos próximos dias 11, 12 e 13 de Agosto haverá mesmo muitas atracções e conferências sobre o tema.
Soubemos, entretanto, que esta exposição pelas ruas da Lourinhã é um simples aperitivo de outra exposição permanente com mais de uma centena de modelos no futuro Parque dos Dinossauros, a inaugurar em 2018 numa área de 10 hectares de um terreno onde funcionava a lixeira municipal. É aí que também será construído um edifício para exposição dos achados paleontológicos com 150 milhões de anos, uma loja e um laboratório para preparação de fósseis. É um investimento de 3,5 milhões de euros, que fará da Lourinhã uma verdadeira capital dos dinossauros.

E ficam vocês em casa!...

António Henriques





sábado, 5 de agosto de 2017

MAIS LEITURAS

Mais um livro, mais uma análise...



O “Vaticanum”, romance de José Rodrigues dos Santos (JRS) publicado no ano passado, foi uma prenda de Natal. O título era sugestivo, mas eu desconfiava um pouco do aviso das primeiras páginas: «A informação histórica contida neste romance é verídica» e, por isso, não me atirei logo à leitura. Preferia começar por informação menos romanceada, até porque também tinha entrado na nossa casa outro livro - “VIA CRUCIS” – Francisco, um Papa em perigo no seio do Vaticano, de GianLuigi Nuzzi, que me poderia ajudar a compreender melhor a realidade dos problemas que o papa Francisco enfrenta para evangelizar a Cúria Romana e todos os serviços da Santa Sé. Por aqui comecei. Já escrevi a minha opinião sobre este livro, que me ajudou a compreender melhor o romance.


Em férias, avancei para as 600 páginas do Vaticanum, que em 10 ou 12 dias foram devoradas. Mas é um exagero gastar tantas folhas.... Podia o autor ficar pela metade e a história não perdia. Já li vários romances do mesmo autor e nele gosto da linguagem jornalística, sem exageros literários, com uma intriga cativante a agarrar o leitor.
Desta vez, cansou-me a abundância de informação relativa aos problemas financeiros da Santa Sé, a ponto de termos de aturar as falcatruas cometidas há muitos anos e tudo o que tem acontecido desde João Paulo I, que no romance é mesmo envenenado na véspera de anunciar decisões extremas. E também me cansaram os diálogos sem fim no momento em que a cena está a atingir o clímax, parecendo que o autor manda parar a vida para dar mais explicações...
Em JRS, a acção é sempre dividida em pequenas cenas, de enredo paralelístico, avançando ora uma ora outra, mas terminando sempre cada pequeno capítulo com um chamariz para a frente, o que leva o leitor a querer saber sempre mais... A intriga policial, que o autor manipula com sabedoria, deixa-nos “em suspense” muitas vezes.
O criptanalista português, Tomás de Noronha, personagem de muitos dos seus romances, desta vez, a pedido do papa, vai «catalogar as sepulturas que se encontram na necrópole e procurar vestígios dos restos mortais de Pedro» por debaixo da basílica e vê-se embrulhado noutra situação, que é desvendar o mistério do assalto aos documentos em análise pelos auditores, especialistas externos que o Papa convidou para endireitar as finanças. E deste primeiro assalto, já com a marca do Estado Islâmico, passa-se para a acção principal. O próprio papa vai ser alvo de acções rocambolescas, bem dramáticas e no limite do trágico, onde se conjugam forças diversas, umas a querer discrição, como a máfia, e outras a procurar publicidade, como os radicais islâmicos. Em jogo surge também o grupo que representa tendências homossexuais.
Tomás de Noronha e Maria Flor continuam a namorar. Ele aparece como personagem determinante para resolver todos os enigmas e ela é apenas uma figura feminina a adoçar a situação e a distrair-nos da tensão policial. Figuras femininas, só ela e a Dr.ª Catherine Rauch, responsável pela equipa de auditores, surgem no romance, por certo para dizer que no Vaticano elas não contam muito.
O conteúdo histórico é bastante aceitável, pois condiz com muitos dos estudos publicados. JRS diz que faz «um relato factual» e confirma mesmo que «a principal fonte foram os livros de referência de Gianluigi Nuzzi...» (p.599) e em muitas páginas eu ia pensando “mas eu já li isto!”. Ficcional é tudo o resto, a começar pelos atropelos graves e extremistas contra o papa.
Mas trata-se de um romance, de uma ficção. E numa obra ficcional a leitura é agradável quando a verosimilhança existe. No entanto, neste caso, algumas soluções do enredo pareceram-me inverosímeis, senão quase impossíveis de ter acontecido, como o túnel cavado por baixo da sanita. E a figura de Tomás de Noronha, que investiga e soluciona todos os crimes também surge mais como um super-homem.
Pronto. O texto já vai longo e não consigo cortá-lo. Ficamos por aqui. O JRS continua a ser o escritor mais lido, mesmo com as críticas. E, para me distrair, talvez avance para outro livro dele. Opiniões!

António Henriques

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

AS MINHAS LEITURAS

"A Metamorfose"
KAFKA.jpg
Franz Kafka
Cardume Editores, Lda

«Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso».

É fácil ler as 78 páginas da “Metamorfose”, de Kafka. Até se pode ler como um conto fantasioso para encher os tempos mortos. Mas, para mim foi uma surpresa a substância psico-sociológica que nesta historieta se pode encontrar.
De rompante, a história começa com as duas linhas que encimam este texto. Sem explicações, sem qualquer nexo de causalidade («porquê, meu Deus?»). Apenas o espanto: «O que é que me aconteceu?».
Depois deste choque inicial, inicia-se uma história de leitura fácil, que até as crianças compreendem.
Aquele bicho (barata, escaravelho?) humano, com memória, pensamento e coração, recorda a sua vida de caixeiro-viajante, cujo ordenado sustenta a família (pais e irmã). Mas, de um momento para o outro, tudo se altera com esta tão catastrófica metamorfose.
O corpo transforma-se numa enorme carapaça, rodeada de muitas pernas que não sabe controlar. Ao sair da cama, este corpo descontrolado cai no chão em grande estrondo, de onde não mais sairá, a não ser para uma rara incursão pelas paredes do quarto, que passa a ser a sua prisão. A família, ao dar pelo caso, arrepia-se, incrédula, afasta-se com receio e nojo e tenta esconder o novo habitante da casa. O pai até o pontapeia... A mãe não consegue aproximar-se e só a irmã mostra alguma compaixão, pensando que o bicho é seu irmão, da sua família, e leva-lhe umas malgas de leite como alimento. Ainda lhe limpa o quarto no princípio, mas até ela, pouco a pouco, se distancia.
Nota-se a dificuldade de as pessoas lidarem com este abstruso evento. Inicia-se mesmo um crescendo de insensibilidade no relacionamento com aquele familiar de formas estranhas, embora se reconheça que «apesar da sua forma actual, triste e repugnante, não deixava de ser um membro da família». Cresce ainda a vontade forte de esconder o caso, não dizer nada, numa absoluta reserva.
Da parte de Gregor Samsa, notamos o fundo desejo de se aproximar da família, ver a sala iluminada e os familiares à mesa ou a irmã a tocar música, arrastando uns passos para fora do quarto e chegar-se à cena..
Mas cresce o desconforto dentro de casa e de todos os que nela entram... Endurece o coração e muda a perspectiva e o relacionamento: «eu nego-me a pronunciar o nome do meu irmão diante deste monstro... temos de arranjar maneira de nos livrarmos dele» ... É a repulsa e o ódio...
O bicho sente-o e retira-se para o quarto, inanimado e triste, morrendo.
É a mulher a dias, resoluta e fria, que finalmente põe fim a esta tragédia. E a família até dá graças a Deus por esta história ter um fim.
Assim, a família que não saía de casa, vai passear para o campo e a rapariga rejuvenesce na «frescura jovem do seu corpo», palavras finais do texto.

E a consciência ficará tranquila?

António Henriques

AS MINHAS LEITURAS - 2

"VIA CRUCIS"


Na continuação dos meus apontamentos sobre este livro, que não vou resumir por ser demasiado denso em informações, refiro apenas mais alguns temas que mostram à saciedade a ingente tarefa a que meteu ombros o papa Francisco.

1 . O Governatorado
O Governatorado é a instituição que «controla atividades comerciais, culturais, manutenção de edifícios e contratações, fiscalização e fornecedores: da energia aos telefones, do tabaco aos computadores para os escritórios» (p. 103)
É um mundo de responsabilidades, que tem, no entanto, histórias pouco dignas e reveladoras de muito desleixo na defesa do património da Santa Sé. Quando Bento XVI nomeou Mons. Viganó para pôr cobro a uma situação em que havia, por ex., contratos com custos superiores em 20% às tarifas do mercado, as empresas e grupos dominantes, sentindo a ameaça, empreendem uma campanha difamatória contra ele e Bento XVI teve que o transferir para Washington, uma espécie de asilo.
Os conselheiros do Papa Francisco avançam depressa sobre os problemas e, pelas análises contabilísticas alarmantes feitas por peritos internacionais, exigem até 31 de Julho de 2013 um relatório exaustivo, que recebeu uma resposta pouco satisfatória: com 18.850 ordens de aquisição de bens e serviços, não há documentação completa e não se pode responder. Os cardeais da Comissão exigem uma auditoria loja por loja e fica-se a saber que «não foram encontrados bens» que constavam do balanço. Onde terão ido parar valores superiores a 1,6 milhões de euros? Alguém se abotoa com eles...
Outro pormenor bem preocupante é o regime oficial do Vaticano, que não paga e não cobra o IVA.
Sem este imposto, parece que só os funcionários e habitantes do Vaticano deviam poder chegar aos produtos. Para isso, criou-se um “cartão de aquisição” que deveria cobrir uns 6.000 utentes, mas na realidade já foram contabilizados mais de 40.000. Muitos ganham com isso, a começar pelos Sr.s Cardeais que além dos descontos entre 15 e 20% de que gozam, também têm direito a grandes lotes de compras que não consomem e alguém o faz por eles. É sabido que «bispos e cardeais têm uma paixão incontrolada por televisores de última geração e pelos mais sofisticados meios eletrónicos» (p. 108) e que, mesmo sabendo que é raro um cardeal fumar, cada um deles tem direito a uma grande quantidade de volumes. Serão para vender fora com IVA incluído?
Vaticano, paraíso fiscal ou estado com impostos? Mas esta situação cria uma má imagem e fere a reputação da Igreja... Há documentos que defendem mesmo a suspensão de algumas actividades por serem contrárias ou alheias aos verdadeiros propósitos da Igreja, como são os casos do vestuário e electrónica, perfumaria e a venda de tabaco...

2 – Passando por cima de casos bem graves que há muitos anos mancharam as finanças da Igreja pelas práticas ilegais de branqueamento de capitais, colaboração em autênticos roubos, inclusivamente na tentativa de compra de falsos títulos para esconder problemas, operados pelo IOR no tempo dos conhecidos Mons. Marcinkus e cardeal Bertone, vou referi o caso das pensões.
Entre os vários buracos negros de que fala o livro, o das pensões é bem ilustrativo.
Há alguns anos que se falava que o Fundo de Pensões estava à beira rutura, mas os eclesiásticos não ligam muito ao que dizem os revisores laicos. Aumenta muito o número de funcionários, as pessoas vivem mais anos e ninguém repara. Os primeiros estudos, bem confidenciais, alertam para um buraco de 800 milhões para um universo de uns 5.000 funcionários.  São dois casos graves: o profundo défice e sobretudo «a incapacidade profissional de quem administra as contas». Em curso estava uma reestruturação das pensões, como já fizeram todos os estados, como igualmente era necessário o controle e aproveitamento correcto de todo o património.

3 - Eu fico com a impressão de que ainda não é com este Papa que a Igreja consegue lidar com todos estes dinheiros e bens de um modo evangélico. A própria falta de colaboração dos vários institutos que lidam com as pessoas e os bens, que resistem a dar as informações que devem à comissão responsável (já foram bloqueados vários orçamentos durante meses por insuficiência de dados), não augura grandes sucessos.
Melhoraram os procedimentos contabilísticos, mas não se conseguiu centralizar as finanças e mesmo a reforma das pensões ainda não acabou. E um dos maiores obstáculos, segundo o meu entendimento, é uma luta assanhada de personalidades, com interesses divergentes mesmo contra o próprio papa. Veremos...
As minhas palavras são para sabermos apenas como vai esta Igreja que eu amo, as suas lutas e fracassos, que desejo sejam superados com sucesso.
António Henriques

AS MINHAS LEITURAS


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 “VIA CRUCIS” – Francisco, um Papa em perigo no seio do Vaticano
Autor: GianLuigi Nuzzi
Bertrand Editora

Acabei de ler há pouco este livro, que me deixou apreensivo, não tanto pelos dizeres da capa e mais pelo seu conteúdo. Habituado a pensar que na Igreja as pessoas, especialmente os dirigentes, estão ali para fazer boa figura, dar bom exemplo, viver de acordo com a ética cristã, esta descrição de muitos acontecimentos dentro do Vaticano e na Cúria Romana levam-me a pensar que pode haver lobos dentro do rebanho, que pode haver destacadas autoridades da hierarquia que se deixam levar pelo poder, pelo dinheiro, pelo luxo em vez do caminho da simplicidade e do serviço aos outros que era suposto seguirem.
Neste livro, o autor disserta sobre a luta que o Papa Francisco e alguns seus apaniguados travam para reformar a Igreja por dentro, nomeadamente a situação das finanças da Santa Sé, a que falta transparência e são dominadas por algumas pessoas que estão habituadas a práticas desonestas, a colaborar mesmo com os chefes da mafia, a desleixar a boa gestão do património e dos dinheiros que deviam ir para os pobres e para as verdadeiras necessidades da Igreja. Há quem defenda mesmo que a resignação de Bento XVI se deve sobretudo à sua incapacidade de dominar estes barões. O seu mordomo, Paulo Gabriele, foi condenado e perdeu emprego e casa por passar para o exterior informações confidenciais. O seu gesto é visto por outros como libertador.
Deixo apenas uns apontamentos:
1 – O autor teve acesso a documentos confidenciais, gravações de reuniões referentes à situação financeira do Vaticano, em que o Papa Francisco começou a trabalhar logo após o 13/03/2013. Francisco, numa reunião, chegou a dizer que no Vaticano «todos os custos estão fora de controle». A cada ano que passava, a situação piorava sobretudo com o aumento desmesurado do número de funcionários, a redução das receitas e a falta de uma gestão correcta das finanças.
2 – Um caso concreto é o que se passa com a “fábrica de santos” (!). Os milhares e milhões de euros que entram para custear as beatificações e canonizações não se sabe bem quem os recebe e como se gastam. Mas o fundo de reserva está baixo...
3 – Do Óbulo de S. Pedro, oferta anual dos fiéis ao Santo Padre, sabe-se o que se recebe, mas ninguém diz como se gasta, que obras de caridade são contempladas. E quando se sabe, como em 2012 com Bento XVI, metade dos 58 milhões ficaram na Cúria para cobrir despesas. Os pobres foram esquecidos. «Por cada euro que chega ao Santo Padre, apenas 20 cêntimos acabam em projectos concretos de ajuda aos pobres», diz Nuzzi.
4 – As duas grandes entidades bancárias do Vaticano, o IOR (Instituto de Obras Religiosas) e a APSA (Administração do Património da Sé Apostólica) há muitos anos que estão manchadas por más práticas, branqueamento de capitais, balanços que não respeitam os procedimentos contabilísticos modernos e transparentes, deixando de fora milhões escondidos não registados, a que se acorre quando necessário. A APSA, que superintende sobre sobre o património mobiliário e imobiliário (ex. os milhões de títulos nos bancos), é acusada de desperdício, de não saber bem o que existe...
5 – Em Fevereiro de 2014, o Papa reuniu os assuntos económicos e administrativos num só Ministério, com uma Secretaria para a Economia, com o Cardeal George Pell, e um Conselho para a Economia (8 cardeais e 7 leigos) para racionalizar e ordenar uma casa cheia de buracos, centenas de instâncias detentoras de dinheiros em desgoverno...
Pouco a pouco, Francisco quer uma Igreja pobre para os pobres. Mas a tarefa continua longe de ser cumprida.
António Henriques
(A CONTINUAR)

segunda-feira, 1 de maio de 2017

VISITÁMOS O MAAT


Já sem as longas filas de há meses atrás, depois de apreciarmos gostosamente o ambiente à volta e por cima do Museu, com belas vistas sobre a cidade e o rio, lá entrámos no novo Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, criado e dirigido pela Fundação EDP, ao Restelo.
Confesso que fiquei com alguma decepção, que foi crescendo à medida que ia percorrendo os espaços. Ao princípio, dominava a UTOPIA, numa referência à ilha de Tomás More onde tudo era harmonia, convivência pacífica e felicidade. Mas logo ali, os textos iam já falando de DISTOPIA, uma palavra nova que parece dominar o nosso mundo.
 Somos uns seres insatisfeitos, sempre na ânsia de mais e melhor. E as tecnologias têm-nos levado a acreditar num futuro mais ideal. Mas depois, o que vimos é destruição – Ruins of Modernity – e os maiores progressos vêm acompanhados de uma crescente poluição, como naquele vídeo em que o passeio por imaginárias cidades era feito no meio de papéis, poeira e lixo a voar por entre as construções.
Chocou-me ver logo na primeira sala uma cadeira feita de espingardas, mesmo que esta função seja mais aceitável que andar por aí a matar pessoas e animais. Os vários projectos apresentados sugerem-me todos ambientes irreais, onde não apetece viver, por mais que a tecnologia avance.
Não sei se esta amostra de propostas tecnológicas está a condizer com as crises sociais e políticas que se avolumam. Mas, sabem o que me apeteceu pensar? – É melhor fugir destas metrópoles megalómanas e viver longe, num simplismo despreocupado. Será por aí que a arquitectura nos quer levar?
À saída, ao menos pudemos rir-nos com uma geringonça puxada por oito ciclistas. É obra!


António Henriques






sábado, 29 de abril de 2017

FÁTIMA - Uma palavra que faço minha

Na impossibilidade de dizer melhor, faço minhas as palavras deste teólogo e filósofo, para falar do fenómeno e realidade de Fátima, dada a proximidade do centenário das Aparições. AH


O que eu penso sobre Fátima (1)

Anselmo Borges

Antes de entrar no tema propriamente dito, quero deixar três notas prévias, que devo ao leitor. A primeira, para dizer que, a pedido da revista internacional Concilium, escrevi, de modo mais organizado, um texto sobre Fátima, a publicar no mês de Junho. A segunda, mais importante, para esclarecer que fui ordenado padre em Fátima pelo cardeal Cerejeira e que, sempre que lá vou para fazer conferências, passo pela Capelinha das Aparições e ali rezo como tantos outros. Depois, à pergunta se vou a Fátima por causa da vinda do Papa respondo que não, porque não gosto de confusões e penso que os responsáveis da Igreja deveriam prevenir as pessoas, pois correm o risco de uma imensa desilusão, já que muitas dificilmente verão o Papa. Prestado este preâmbulo, o tema.
1. Deve ficar claro, desde o princípio, que Fátima não é dogma de fé. Que é que isto significa? Que se pode ser bom católico e não acreditar em Fátima. Fátima não faz parte do Credo. Outro esclarecimento mais urgente ainda: Fátima não ocupa nem pode ocupar o centro do cristianismo, o centro é Jesus de Nazaré, confessado como o Cristo, portanto, Jesus Cristo, e o Deus de Jesus e as pessoas, todas.
Aí está a razão por que, como disse a João Céu e Silva para o seu belo livro sobre Fátima, Fátima. A Profecia Que Assusta o Vaticano, eu trouxe a Portugal grandes teólogos, para congressos e colóquios, e não manifestaram interesse em ir a Fátima. De facto, Fátima não é propriamente uma questão teológica, é sobretudo uma questão de religiosidade popular. De imenso significado e que deve ser respeitada, sem dúvida alguma.
2. Para surpresa de alguns, confesso que não me custa admitir que as três crianças, os pastorinhos, tenham feito uma verdadeira experiência religiosa em Fátima.
Qualquer pessoa minimamente atenta, quer queira quer não, acaba por perceber que há um mistério no mundo. Fernando Pessoa dizia: olha para o lado e o mistério está lá (cito de cor), mas eu digo mais: ele está ao lado, em cima, em baixo, dentro, fora, em toda a parte. E todos somos confrontados com esse enigma e mistério e perguntamos: o que é isto?, qual é o fundamento de tudo?, qual é o sentido da existência?, para quê tudo? Crente é aquele, aquela, que se entrega confiadamente ao Mistério, ao Sagrado, esperando dele sentido, sentido último, salvação. Escusado será dizer que essa experiência e essa resposta confiada de fé surgem sempre interpretadas num determinado contexto existencial, pessoal, social, histórico, no quadro de pressupostos e expectativas, e na e pela sua mediação também.
3. As crianças também podem fazer uma experiência religiosa. E isso, repito, pode ter acontecido também em Fátima com aquelas crianças, os três pastorinhos. De facto, não consta que tenham sido pagas para dizer que viram Nossa Senhora; pelo contrário, até sofreram bastante. A própria Igreja, no começo, pôs muitas reticências.
Mas, acrescento, foi uma experiência religiosa, evidentemente, à maneira de crianças e no contexto histórico da altura: havia perseguição religiosa da Igreja por parte da Primeira República, estava-se em guerra (as crianças devem ter ouvido falar sobre a I Guerra Mundial e de como os soldados partiam para a guerra), e vivia-se no enquadramento religioso da época, que implicava as chamadas missões populares, com pregadores "missionários" que vinham de fora e, do alto dos púlpitos, aterrorizavam os fiéis com sermões de temor de Deus e terror do inferno. As crianças ouviam estas coisas na igreja e em casa.
Assim, tratou-se de uma experiência religiosa à maneira de crianças e segundo esquemas e uma imagética hermenêutico-interpretativa situada no seu contexto. Não se pode esquecer que a experiência religiosa se dá sempre dentro de uma interpretação, de tal modo que há experiências religiosas melhores e piores ou menos boas. A daquelas crianças não foi das melhores, pois pode-se, por exemplo, perguntar: que mãe mostraria o inferno a crianças de 10, 9 e 7 anos? Os pastorinhos ficaram marcados negativamente e, de algum modo, com a vida tolhida. Ao mesmo tempo, e isso é admirável, tiveram uma imensa generosidade face à situação que viviam.
Acrescente-se que aquele núcleo de experiência foi sendo submetido a arranjos e rearranjos ao longo do tempo, segundo novos esquemas interpretativos, no contexto de novas situações históricas e novos desenvolvimentos.
4. Perguntam-me: e eles viram mesmo Nossa Senhora? Maria, a mãe de Jesus, apareceu mesmo?
Aqui, é decisivo fazer uma distinção essencial. Entre aparições e visões. Uma aparição é objectiva, como, quando, por exemplo, estamos a conversar com uma pessoa e chega uma outra pessoa: os dois vemos a terceira pessoa que chega; se estivéssemos quatro ou cinco pessoas, seríamos quatro ou cinco a ver e a constatar a chegada objectiva desta outra pessoa. Evidentemente, não foi isso que aconteceu em Fátima e, neste sentido, é claro que Nossa Senhora não apareceu em Fátima aos pastorinhos. Se fosse uma aparição, todos os presentes veriam e constatariam a sua presença, o que não aconteceu nem podia acontecer, pois Maria não tem um corpo físico que possa mostrar-se empiricamente.
Tudo o que é espiritual é da ordem espiritual. Por exemplo, na Anunciação, não apareceu empírico-objectivamente nenhum anjo a falar com Maria. O que ela teve foi uma experiência místico-religiosa interior. Isso é uma visão, no sentido técnico da palavra: uma percepção interior. As grandes experiências são interiores e vão para lá do empírico. Afinal, a objectividade empírica não detém o monopólio de toda a realidade, da realidade mais verdadeira. (Continuaremos).

Padre e professor de Filosofia