Novo livro de Elena Ferrante
Desta vez, após ter lido elogios à riqueza literária de Elena Ferrante, decidi-me ir atrás das modas e adquirir “A vida mentirosa dos adultos”, uma novidade desta autora, que há vinte anos tem entusiasmado leitores e críticos com a sua escrita desenvolta a perscrutar o íntimo das suas personagens, preferentemente mulheres.
Sinceramente, este romance ocupou-me
com agrado durante este mês de pandemia, em que a casa passou a ser o único lugar
para todos os devaneios. As suas 300 páginas foram lidas quase à pressa, tal
não era o gosto e a vontade de ver como se iriam desenvolver os dias desta
adolescente napolitana, Giovanna, que corporiza o centro da ação como narradora
participante a viver uma história cheia de ligações frágeis a outras
personagens, também elas carregadas de vivências pessoais que enriquecem
sobremaneira estas páginas.
Elena Ferrante é um pseudónimo de
mulher ou homem italiano, de Nápoles, que ninguém conhece verdadeiramente, mas
que desde 1991 tem produzido obras de ficção cheias de histórias que parecem
reais. Em entrevistas escritas, a autora defende o seu anonimato como um meio
para usufruir de inteira liberdade criativa e não fazer autocensura, escrevendo
sem constrangimento pessoal as vivências mais íntimas ou mais cruas das
personagens.
Em resumo,
para não retirar novidade aos futuros leitores, a história acompanha a passagem
de Giovanna - a protagonista - da adolescência para a vida adulta. Ao escutar os
pais sem o conhecimento destes, ouve dizer que ela está a ficar feia como uma
tia não falada em casa. Isto perturba-a a ponto de começar a olhar mais para o
espelho e a querer saber da tal tia Vitória.
As amigas e o ambiente tranquilo da
infância deixam de contar e surge a descoberta de um mundo novo com outras
figuras do mundo suburbano, pobre e industrial de Nápoles, onde mora a tal tia
Vitória, renegada pelo pai e que fora apagada das fotos de família (classe média-alta
de professores).
Abre-se à protagonista um mundo diferente,
de relações promíscuas, pouco recomendáveis, mas acompanhadas de sentimentos
humanos profundos. E ouve outras histórias que a levam a olhar para os pais com
desapontamento, pois eles não eram assim tão puros e perfeitos.
Surgem assim experiências confusas,
onde se debatem os comportamentos numa tensão entre o bom ou o mau, permitido
ou inconveniente na sociedade, igual aos outros ou diferente. Descobre-se que a
mentira mascara muitas vidas, o que leva a protagonista a buscar a sua verdade,
usando também a mentira, tentando experimentar novas relações para construir a
sua personalidade. Mas, no meio destas descobertas, há um desmoronar de
convicções que levam ao desapontamento.
Que comentários posso fazer?
- Já li e aceito que nesta obra
domina o mundo feminino, em que a mulher se mostra forte, corta a direito,
rompe relações e domina os ambientes. Mas também se nota entre elas a
concorrência, a luta, o domínio, o ciúme, ou a amizade e a colaboração
desinteressada. E até sentimos a história envolvida em elementos físicos
mágicos, como sejam certos espaços de encontro, as casas, as roupas, e ainda
uma pulseira, capaz de exalar beleza e arrastar maldição para a sua utente.
- As personagens surgem tão reais que
nos cativam a atenção, ora pela nobreza ora pela vileza de caráter, ora porque
são solidárias ou porque se enchem de ódio, egoísmo, ciúmes; ao fim e ao cabo,
todos estão manchados!
- O fim da adolescência é mesmo
tormentoso. O carinho dos pais já não enche o coração da filha, pois ela
descobre falsidades, vida tortuosa nos seus adultos e começa a isolar-se, a
autonomizar-se, assumindo posturas imprevisíveis, desde o desleixo pessoal ao
desprezo pela escola ou mesmo vida sem regras, em busca de um ideal de mulher
muito pessoal.
- Atenção: cada página é uma mistura
de narração, descrição e diálogo interior em que Giovanna se discute a si mesma
de uma forma perfeita. Admiramos o texto, mas temos de ver a criatividade da
autora por detrás de cada palavra, que uma adolescente não consegue falar e escrever
assim…
- Esta “história” está marcada de
atualidade. Casais que se descasam e continuam amigos uns dos outros, mulheres
que acham normal que o amor que sentem por um homem casado é razão para o
tirarem à vizinha, mas que, após a morte do homem, são capazes de se juntarem
as duas para tratar dos filhos de uma…
- Finalmente, a protagonista vai-se
desprendendo de pessoas, da família, dos amigos e de espaços e, no final, até
da cidade se desprende. À procura de uma libertação? É o que todos queremos!
Últimas palavras do livro: «… prometemos
uma à outra tornarmo-nos adultas como nunca acontecera com nenhuma».
António Henriques