quinta-feira, 19 de novembro de 2020

A vida mentirosa dos adultos

 Novo livro de Elena Ferrante


Desta vez, após ter lido elogios à riqueza literária de Elena Ferrante, decidi-me ir atrás das modas e adquirir “A vida mentirosa dos adultos”, uma novidade desta autora, que há vinte anos tem entusiasmado leitores e críticos com a sua escrita desenvolta a perscrutar o íntimo das suas personagens, preferentemente mulheres.

Sinceramente, este romance ocupou-me com agrado durante este mês de pandemia, em que a casa passou a ser o único lugar para todos os devaneios. As suas 300 páginas foram lidas quase à pressa, tal não era o gosto e a vontade de ver como se iriam desenvolver os dias desta adolescente napolitana, Giovanna, que corporiza o centro da ação como narradora participante a viver uma história cheia de ligações frágeis a outras personagens, também elas carregadas de vivências pessoais que enriquecem sobremaneira estas páginas.

Elena Ferrante é um pseudónimo de mulher ou homem italiano, de Nápoles, que ninguém conhece verdadeiramente, mas que desde 1991 tem produzido obras de ficção cheias de histórias que parecem reais. Em entrevistas escritas, a autora defende o seu anonimato como um meio para usufruir de inteira liberdade criativa e não fazer autocensura, escrevendo sem constrangimento pessoal as vivências mais íntimas ou mais cruas das personagens.

Em resumo, para não retirar novidade aos futuros leitores, a história acompanha a passagem de Giovanna - a protagonista - da adolescência para a vida adulta. Ao escutar os pais sem o conhecimento destes, ouve dizer que ela está a ficar feia como uma tia não falada em casa. Isto perturba-a a ponto de começar a olhar mais para o espelho e a querer saber da tal tia Vitória.

As amigas e o ambiente tranquilo da infância deixam de contar e surge a descoberta de um mundo novo com outras figuras do mundo suburbano, pobre e industrial de Nápoles, onde mora a tal tia Vitória, renegada pelo pai e que fora apagada das fotos de família (classe média-alta de professores).  

Abre-se à protagonista um mundo diferente, de relações promíscuas, pouco recomendáveis, mas acompanhadas de sentimentos humanos profundos. E ouve outras histórias que a levam a olhar para os pais com desapontamento, pois eles não eram assim tão puros e perfeitos.

Surgem assim experiências confusas, onde se debatem os comportamentos numa tensão entre o bom ou o mau, permitido ou inconveniente na sociedade, igual aos outros ou diferente. Descobre-se que a mentira mascara muitas vidas, o que leva a protagonista a buscar a sua verdade, usando também a mentira, tentando experimentar novas relações para construir a sua personalidade. Mas, no meio destas descobertas, há um desmoronar de convicções que levam ao desapontamento.

Que comentários posso fazer?

- Já li e aceito que nesta obra domina o mundo feminino, em que a mulher se mostra forte, corta a direito, rompe relações e domina os ambientes. Mas também se nota entre elas a concorrência, a luta, o domínio, o ciúme, ou a amizade e a colaboração desinteressada. E até sentimos a história envolvida em elementos físicos mágicos, como sejam certos espaços de encontro, as casas, as roupas, e ainda uma pulseira, capaz de exalar beleza e arrastar maldição para a sua utente.

- As personagens surgem tão reais que nos cativam a atenção, ora pela nobreza ora pela vileza de caráter, ora porque são solidárias ou porque se enchem de ódio, egoísmo, ciúmes; ao fim e ao cabo, todos estão manchados!

- O fim da adolescência é mesmo tormentoso. O carinho dos pais já não enche o coração da filha, pois ela descobre falsidades, vida tortuosa nos seus adultos e começa a isolar-se, a autonomizar-se, assumindo posturas imprevisíveis, desde o desleixo pessoal ao desprezo pela escola ou mesmo vida sem regras, em busca de um ideal de mulher muito pessoal.

- Atenção: cada página é uma mistura de narração, descrição e diálogo interior em que Giovanna se discute a si mesma de uma forma perfeita. Admiramos o texto, mas temos de ver a criatividade da autora por detrás de cada palavra, que uma adolescente não consegue falar e escrever assim…

- Esta “história” está marcada de atualidade. Casais que se descasam e continuam amigos uns dos outros, mulheres que acham normal que o amor que sentem por um homem casado é razão para o tirarem à vizinha, mas que, após a morte do homem, são capazes de se juntarem as duas para tratar dos filhos de uma…

- Finalmente, a protagonista vai-se desprendendo de pessoas, da família, dos amigos e de espaços e, no final, até da cidade se desprende. À procura de uma libertação? É o que todos queremos!

Últimas palavras do livro: «… prometemos uma à outra tornarmo-nos adultas como nunca acontecera com nenhuma».

 

António Henriques

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

As flores da minha rua

 Estamos em confinamento, não é?

Pois, no meio de todo o sofrimento que este estado de coisas nos provoca, eu sinto-me um privilegiado. Tenho uma casa grande e um quintal, onde me posso distrair com alguma liberdade. Durante uns meses, caminhava em casa e no quintal para fazer os meus 2km. Depois, escolhemos uma zona do Seixal, muito reservada, onde nos distraíamos com o ambiente, as águas, as belezas circundantes. Mas começámos a ver que mais gente começava a usar aquela plataforma para mudar de ambiente.

Com o crescer de regras para o confinamento, sobretudo o distanciamento social, eu resolvi aproveitar as duas ruas do bairro onde vivemos para fazer as minhas caminhadas. O silêncio raramente é perturbado; apenas os melros se ouvem. Movimento de carros, vejo um ou dois durante aquela meia hora. Pessoas, também muito raramente me cruzo com alguém...

Assim, comecei a olhar para as casas, as ruas, os gatos e a natureza circundante, flores e árvores. Às vezes, até dá para rezar o terço... Hoje, peguei no telemóvel e fui captando fotos das flores mais significativas. Nada de especial, é verdade, mas o suficiente para me distrair. 

Se quiserem, vejam. É o melhor que posso trazer para sacudir o vazio do nosso blogue.

António Henriques