terça-feira, 3 de outubro de 2023

Aos 50 anos do P. Escarameia

Em Vila Velha de Ródão - o que eu queria dizer

Na longa, mas não fastidiosa, homenagem ao P. António Escarameia nos seus 50 anos ao serviço daquela paróquia, desde que soube do evento prometi a mim próprio que estaria presente.

Razões são várias, a começar pela ligação pessoal que me prende àquela terra, onde fiz a segunda classe e onde o prof. Benjamim insistia com o meu pai para eu continuar a estudar.

Mas sobretudo está em jogo a vivência de muitos anos no Seminário com o homenageado.

Em poucas palavras, se eu falasse publicamente, começava por elogiar a Câmara Municipal por este gesto nobre de agradecer o trabalho de um cidadão que gastou já 50 anos da sua vida a animar a vida cristã de muita gente, num serviço humilde e ignorado junto de todos nas horas felizes e nas horas tristes. Além disso, dedicou-se abertamente a muitas iniciativas que muito desenvolveram a comunidade, desde a escola aos grupos culturais de teatro e música e ainda à direção de instituições sociais – Bombeiros e Misericórdia, se não estou em erro… E, para admiração dos mais céticos, até andou à frente de muitos em Informática, inclusive na arte da programação e em “sites e blogues”.


O segundo elogio ia para o homenageado. Se aqueles muitos presentes na homenagem, linda na expressão dos rostos que acorreram ao Centro de Artes, conhecem bem o P. Escarameia dos últimos 50 anos, eu conheço outro Escarameia, dos tempos da juventude.

E na sua juventude, eu convivi com este aluno cheio de curiosidade, com tendência para saber mais profundamente, como foi a sua relação com o órgão, que sozinho aprendeu no seu 5.º ano e depressa passou a ser o organista-mor do seminário! Em Portalegre, no Seminário Maior, enquanto outros corriam para os campos a fazer desporto, o Escarameia corria para o órgão e deleitava-se no perfeccionismo das suas execuções musicais.

Humilde e colaborador, sem querer dar nas vistas, não se furtava ao trabalho naquelas atividades extra com que preenchíamos as horas, levados por alguns professores mais entusiastas. Estávamos nos finais dos anos 50 e tinha chegado de Roma o Sr. Dr. Marcelino (mais tarde bispo de Aveiro). A ideia maior era aproximar-nos das pessoas a quem mais tarde iríamos servir como padres. Criaram-se clubes de arte, literatura, cinema…. Alimentávamos uma Página Cultural mensal no jornal de Castelo de Vide e dentro de portas também se preparavam sessões, em que os oradores eram os próprios alunos. Com tantas mudanças, o P. Escarameia chega a dizer: «vivi o velho e o novo testamento dos seminários».

Bem me lembro de uma vez se terem distribuído temas para alguém preparar. Eu aceitei um sobre naturalismo e o Escarameia, um pouco forçado, viu-se com três temas em mão. Eu próprio lhe disse que era demais!  Passadas umas semanas, o P. Milheiro começa a querer saber como estavam as coisas. Todos iam falando e o Escarameia…calado! O P. Milheiro, sempre atarefado, ainda pergunta: - então, Escarameia, como vai o teu trabalho? Resposta rápida: - está quase, Sr. Padre.

Fui ter com ele no fim, admirado com a resposta. E diz-me ele: - ora, está quase a começar! Isto não era mentir, era uma simples reserva mental! Mas os trabalhos um dia apareceram, como era nosso timbre.

Com a pandemia, o Escarameia, fechado em casa, achou que era tempo de escrever as suas crónicas sobre o nosso passado nos seminários. Com uma memória muito fiel, atira para o papel mais de 50 deliciosos acontecimentos em textos tão bem escritos que nos fazem lembrar “A cidade e as serras” do Eça. Escreve, organiza, imprime e encaderna a obra com mais de 100 páginas, que depois oferece aos amigos. Que grande escritor, que grande tipógrafo, que grande artista!

E é desta obra, que nós lemos com muito agrado por serem episódios pitorescos dos nossos tempos de “meninos e jovens”, que eu confirmo o seguinte:

- o P. Escarameia vive enamorado com a vida, feliz por ter sido escolhido por Deus para padre!

- com humildade, sabe reconhecer que também erra e pede desculpa;

- muito observador, tanto aprendeu como o ti Manel tratava as sardinhas do pequeno-almoço, que «saiam fritas e assadas ao mesmo tempo», como não cala as injustiças que presenciou na educação dos seminários e sabe ser crítico; mas gosta muito da amizade entre nós: «a alegria da nossa juventude e da nossa amizade entre colegas mitigava os nossos medos e receios».

- pensa criticamente as práticas da Igreja e reconhece que muito há que fazer, especialmente no que toca à mulher que na Igreja «ainda hoje não serve para algumas coisas»… Ou ainda quando, em idade avançada, os padres vivem «abandonados… sem sabermos onde vamos reclinar a cabeça na velhice…». Ai, António Escarameia, não estás longe do que todos nós estamos a sentir também quanto à falta de estruturas de acolhimento dos idosos!

Olha, com a tua boa vontade e alegria, ainda estás aí capaz de também alegrar muitos e seres feliz a fazer os outros felizes. Gostei tanto do teu dia 1 de Outubro de 2023!.

António Henriques




terça-feira, 26 de setembro de 2023

O trono e o altar - Um livro testemunho

Estou a escrever este texto a pensar no amigo que nos deixou há poucos meses sem se despedir e a quem estavam ligados laços de muita estima e elevada consideração. A morte é assim: repentinamente, vão-se as tarefas e adeus a tudo e a todos, sem contemplação…

É no velório do meu amigo, José Tomaz Ferreira, que tenho conhecimento do seu livro, um testemunho escrito, publicado no ano anterior, onde ele mergulha no ambiente histórico que entreteceu e condicionou toda a sua existência com a consciência aguda e a solidez do querer que o identificavam.  Intitula-se o livro “O TRONO E O ALTAR – EM TEMPOS DO ESTADO NOVO”, da Edit. VERITAS, Guarda, numa edição de 300 ex. e 182 páginas.

Foi de rompante que li esta pérola e foi para degustar melhor o seu conteúdo que o voltei a ler. Para quem viveu ou se interessa pelos ambientes eclesiásticos entre os anos 60 e 74, encontrará aqui uma história pitoresca nos seus eventos e deliciosa nos meandros que tecem as relações entre Igreja e o Estado Novo, cada um a defender a sua verdade, muitas vezes toldada de conveniência e conluio, contra o espírito de Evangelho (“A verdade vos libertará!”).

O autor começa por descrever em poucas páginas a história das relações entre o Estado e a Igreja, desde o roubo descarado de todo o património e expulsão das ordens religiosas por Joaquim António de Aguiar, o Mata-frades, no séc. XIX até à Lei da Separação, apressadamente decretada pela República, de que resulta uma declarada subordinação do clero ao Estado. É neste estado das coisas que a chegada de Salazar, após a Ditadura e a Constituição de 1933, serena os espíritos cristãos, que veem nele o arauto de novos tempos. A amizade de Salazar e do Cardeal Cerejeira nos 11 anos de convivência em Coimbra em defesa dos princípios cristãos (Salazar, antigo seminarista de Viseu e católico praticante!) faziam adivinhar novos tempos…


Neste aconchego, ainda por cima com a assinatura de uma Concordata com a Santa Sé, a Igreja passou a conviver com a situação política, assumindo como uma bênção a proteção do Estado Novo. A hierarquia católica abençoava o regime, mas ia esquecendo os seus podres – regime de partido único, controlador das consciências através da censura e da Pide e com uma rede imensa e escondida de informadores-delatores sem qualquer direito ao contraditório.

É nesta malha obscura que o José Tomaz se vê enredado sem sequer se dar conta. Estas são as manápulas do poder – o TRONO do título – que insidiosamente vai controlando os seus movimentos. Quanto à hierarquia religiosa daquele tempo, os respeitáveis bispos não estavam habituados ao diálogo e muito menos a contrariar as tendências políticas – era o ALTAR submisso, com exceções raras como o caso do bispo do Porto.

Depois de ter estudado em Roma, em 1961 o novo padre é convocado pelo bispo da Guarda para o seminário com mais dois colegas para a função de prefeitos, isto é, responsáveis diretos dos alunos na condução da vida diária da comunidade. Logo aqui, começam as incongruências: o bispo não permite que o jovem padre vá a Roma fazer exame à última cadeira para completar o curso. E o jovem padre obedece, pois é esta a sua postura pessoal.

Durante cinco anos, esta equipa disciplinar usa a sua juventude e saber para criar no seminário um ambiente de boas relações, educando os jovens seminaristas nos valores humanos e cristãos.  Contra o ritualismo (em que bastava obedecer), eles incitam os alunos no espírito de iniciativa, na relação de confiança (pela proximidade), no saber justificar as ações, não dando ordens sem as justificar, no respeito pelo outro, o que origina uma mentalidade nova.

Parece que esta postura desagradava a alguém, especialmente àqueles que não toleravam críticas ao estado das coisas na diocese e no país. Aos ouvidos do Bispo e dos colegas mais velhos esta atitude apodava-os de “desorientados”. Mas o pior era o que chegava às centrais de informação política através dos informadores anónimos e contra estes delatores ninguém se podia defender. E eles existiam até “à mesa das refeições no Seminário” (pág. 54).

Na diocese da Guarda, o P. José Tomaz era muito considerado e com facilidade era cooptado pelos seus colegas para o representarem no Conselho Presbiteral. E nunca ninguém se aproximou dele a pedir explicações ou a fazer críticas: “entre o Prelado e a minha pessoa … um silêncio apocalíptico”! p. 81)

No seu dia-a-dia, a equipa sacerdotal ia fazendo o seu serviço e o número de seminaristas que chegavam às ordens sacras não destoava dos anos anteriores: nos cinco anos anteriores a 1961, ordenaram-se na Guarda 37 padres. Entre 1961 e 1966, com estes suspeitos formadores, ordenaram-se 32 e mais 3 que foram para ordens religiosas…

Em 1966, o Bispo renova por completo a equipa de formadores, voltando à educação tradicionalista, em que até a correspondência era censurada. E durante 11 anos a diocese da Guarda não viu mais nenhum novo sacerdote. O que leva o meu amigo a friamente dizer que o bispo inverteu a parábola dos talentos: «premiou os estéreis e pôs a ferros os que conseguiam produzir!». (pág.72)

Conclusão: o José Tomaz e colegas criaram no seminário uma “célula comunista”, que afinal dera frutos só após eles terem saído (!!!), pois “não fomentava a piedade, a obediência, o amor ao sacerdócio” (pág. 73-74). E num relatório da Pide de 1968, a chave da “expulsão” deles do seminário era: «incutiam no espírito dos Seminaristas ideias políticas contrárias ao actual regime» (pág. 86). O TRONO insidiosamente sempre se imiscuia nas coisas do ALTAR…

As ideias novas do Vaticano II iam moldando as mentalidades. Até o Bispo da Guarda, em 1966, quer o “Movimento por um Mundo Melhor” na sua diocese. Fazem-se dois cursos e nos dois cursos, a pedido do prelado, vota-se no sacerdote que vá orientar o Movimento. Como nas duas votações é eleito o “desorientado” padre José Tomaz, o Bispo não o nomeia!...

Mas tudo se encaminha para o desterrar para Lisboa: «em nome da obediência, coloquei a decisão nas mãos do Bispo, assegurando-lhe que estava disposto a fazer o que ele mandasse». (p. 89)

Nomeado Assistente Nacional-Adjunto do Escutismo – C.N.E., desenvolveu a formação religiosa dos seus dirigentes, mas depressa notou que, mesmo aí, a conivência com as orientações do poder político era flagrante e a má fama que trazia da Guarda chegou a alguns dirigentes da Junta Central e até o Arcebispo de Braga, Assistente Nacional, chega a desqualificá-lo num Encontro Nacional com o epíteto de SACRISTÃO. Mesmo assim, registo o que ele diz na pág. 92: «Devo ao Escutismo os momentos mais gratificantes… foi nele que cimentei amizades que até hoje se mantêm intactas…» (NOTA muito pessoal: foi o escutismo que também me aproximou deste grande homem, sempre alegre e íntegro).

A Pide continua atenta e sente-se a sua presença nas nomeações para professor nos colégios, de onde ele provia ao seu sustento. Por razões políticas, não conseguiu sequer o Diploma de Ensino Particular por “falta de idoneidade moral e cívica” (p. 149). Nos primeiros anos, a sua aceitação como professor de Moral passava com a frase: «não oferece garantias de defesa dos superiores interesses do Estado”, mas em 1972/73 “a Pide endureceu a sua posição a meu respeito” (p. 118) e foi vetado para o cargo de Assistente religioso da Mocidade Portuguesa na Escola Pedro de Santarém. Esta função religiosa dependia do Patriarca de Lisboa e numa audiência com ele, mais uma vez o meu amigo ficou a saber que ninguém, nem mesmo o Cardeal ia «exigir que o Estado não interferisse no governo da Igreja… Tudo era feito a bem da Nação… Mas sempre com o trono a exigir a protecção do altar.» (p. 142)

Esquecido pelo seu Bispo, impedido de se sustentar pela Igreja, o José Tomaz virou-se para a vida civil e geriu com muito talento a revista Lumen e escreveu para jornais.

António Henriques

domingo, 12 de março de 2023

Foi há sete anos!

 AMORA AGRADECIDA

Permitam-me que hoje elogie a Igreja na pessoa do pároco que serviu a nossa paróquia durante 16 anos. Também tenho o direito de dizer bem, já que outros se arrogam o direito de só dizer mal. AH

 A paróquia de Amora despediu-se hoje do seu pároco, que aqui serviu nos últimos 16 anos. O P. Pedro Granzotto vai deixar muitas saudades e também levará muitas, como lhe disse hoje o Sr. Bispo.

Não lidei com ele de perto, mas nas muitas vezes que nos aproximámos pelas mais variadas razões, ora institucionais ora pessoais, sempre vi neste sacerdote um homem sereno, dedicado, marcado pela missão de servir o melhor possível a comunidade religiosa de Amora.

Na hora da despedida, vem à mente a obra maravilhosa que nos deixa.

Estou a pensar na nova Igreja, que custou a arrancar durante anos e só com ele se concretizou. Uma obra que com muita determinação ele foi erguendo, conseguindo cativar para a mesma os seus paroquianos. Ainda está a ser paga, mas sem ele a obra não se fazia.

Estou a pensar também na Igreja viva que com ele se foi desenvolvendo. Curiosamente, é consolador ver os 800 lugares da Igreja ocupados na missa dominical. Já nem falo da missa de hoje, em que tudo o que era espaço foi ocupado por muitos bancos de plástico ou por pessoas em pé. Lembro-me do tempo da sua construção, em que tinha ficado reservada uma sala ao lado para servir de capela para as missas da semana, mas que nunca serviu, pois a assistência era bastante para a missa se celebrar na Igreja Nova.

Além do espaço da Igreja, o complexo oferece muitas salas para os vários movimentos e catequese da paróquia, além de um salão de festas para umas 400 pessoas e com um belo palco, com muitas funções.

A paróquia de Amora é servida pelos padres da Congregação Scalabriniana, votada ao apoio dos migrantes. Por isso, a substituir o P. Pedro Granzotto, tomou hoje posse outro scalabriniano, o P. Geraldo, permanecendo connosco os outros três sacerdotes da equipa.

O P. Pedro, há 16 anos, chegou pobre e agora sai pobre. Deixa toda a riqueza connosco. É um exemplo muito forte de dedicação, que a nossa Igreja oferece ao mundo, mais um daqueles valores que me prendem à comunidade cristã. Outro exemplo é o respeito que ele tinha por todos, nutrindo o gosto de facilitar a vida a todos os grupos e etnias existentes, que se manifestam com os seus particularismos em ocasiões especiais.

Ao P. Pedro e ao P. Geraldo, os dois na foto ao lado, desejo as maiores felicidades. E apelo a que olhem sempre para as pessoas como dizia o Evangelho de hoje: ricos ou pobres, bons e maus, merecedores ou culpados, todos cabem na Igreja de Deus.


António Henriques

- Texto pulicado no blogue "AnimusSemper" em 11/09/2016 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

As palavras deste Natal

Os dias correm apressadamente na ânsia de tudo preparar para a grande festa de Natal. Queiramos ou não, todos somos apanhados na enxurrada das compras, das limpezas, dos presentes, porque naquele dia queremos todos fazer boa figura, receber bem as visitas, oferecer-lhes o melhor, não por vaidade, mas sobretudo por íntimos sonhos de ver todos agradados e irmanados nos valores da família em comunhão.

Para que o blogue vos apresente alguma novidade, ainda encontrei uns momentos para escrever sobre as palavras que mais me fizeram pensar nos tempos que correm. Vamos lá!

Tem sido tema de conversa a palavra “húbris”, que alguém utilizou num contexto político-social especial, criticando sentimentos visíveis numa entrevista em que se usam palavras nada lisonjeiras para adversários políticos.

Húbris é daquelas palavras inusuais, estranhas, que não aparecem na linguagem comum. Eu não a conhecia e o grande dicionário Lello, de 1980, também não a conhece. Mas, pelos vistos, existe e o Dicionário online Priberam dá-lhe este significado: “Orgulho excessivo. = ARROGÂNCIA, INSOLÊNCIA, SOBERBA”. Confesso que estes sentimentos não são apropriados a um político sensato, mas foi com eles que o crítico apodou o sr. político. Não sei se se vai realizar o que premonitoriamente a Infopédia (Dicionário Porto Editora) diz: « … um desafio aos deuses e que acarreta a ruína de quem assim age».

Em sentido contrário, surge o antónimo de húbris - "sofrósina", outra palavra que foge ao léxico corrente, que também não consta do Lello Universal. Estas duas palavras são translação direta do grego. Para este antónimo, o Dicionário Priberam apresenta este significado: “Qualidade do que é prudente, comedido, moderado ou sensato. = MODERAÇÃO, PRUDÊNCIA, SENSATEZ”.

Estas, sim, são palavras adequadas à quadra natalícia e não só! Todos devíamos ter a humildade suficiente para dosear a crítica ao nível dos semelhantes, sabendo que todos têm direito ao nome e à participação pública. É assim que se começa o caminho para as ditaduras, que são situações com que nos vemos confrontados, sobretudo ao olharmos para o que a Federação Russa está a fazer à Ucrânia, que também nos atinge por ricochete.

E cá vem agora outra palavra dos nossos dias – a PAZ! Vou citar o Padre António Vieira, um clássico que vale a pena:

«Não Há Paz no Mundo

Enchem a boca de paz, e não há tal paz no mundo. E senão, quem há tão cego, que não veja o mesmo hoje em toda a parte? Dizem que há paz nos reinos, e os vassalos não obedecem aos reis: dizem que há paz nas cidades, e os súbditos não obedecem aos magistrados: dizem que há paz nas famílias, e os filhos não obedecem aos pais: dizem que há paz nos particulares, e cada um tem dentro em si mesmo a maior e a pior guerra. Havia de mandar a razão, e o racional não lhe obedece; porque nele, e sobre ela domina o apetite. (...) A paz do mundo é guerra que se esconde debaixo da paz. Chama-se paz e é lisonja: chama-se paz, e é dissimulação: chama-se paz, e é dependência: chama-se paz, e é mentira, quando não seja traição.»

Padre António Vieira, in "Sermões"

Digamos, para concluir, que não é a ausência de guerra a verdadeira paz. Esta requer a
humildade, a aceitação do outro, a colaboração, o diálogo entre iguais, o respeito pelos direitos dos outros… E ainda há poucos dias eu ouvia o P. Bento Domingues sugerir que o melhor para vivermos em paz é cada um perguntar “o que posso fazer pelos outros?”.

A todos os meus leitores, um Feliz Natal.

António Henriques

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Uma visita a Atouguia

Passando uns dias a apanhar sol e iodo na praia da Consolação, é natural que façamos algumas deslocações pelos arredores, a começar por Peniche, onde sempre nos esperam bons pratos de peixe. Mas desse promontório vigilante do mar e das ilhas Berlengas não irei falar.
Costela de baleia petrificada
Hoje pretendo ir um pouco mais para o interior, poucos quilómetros, para falar de espaços menos conhecidos e menos falados. Quem conhece Atouguia da Baleia?

Pois, Atouguia da Baleia desde tempos remotos cresceu como grande e apetitoso entreposto comercial, com aquela grande enseada acolhedora de barcos e zona propícia à agricultura e à pesca. Hoje até parece estar longe do mar com tantos assoreamentos.

Não é a primeira vez que ali nos deslocamos e ficamos a olhar para aquelas construções com a riqueza do passado, que nos faz imaginar mundos de gente trabalhadora, ousada e disposta a vencer as dificuldades que a natureza lhe impunha… E que dizem os folhetos turísticos?

Atouguia, que também se denomina Touria (lugar onde os touros selvagens tinham já relevo, a ponto de constarem do brasão!), foi povoação doada por D. Afonso Henriques em 1147 a D. Guilherme de Corni, um cruzado franco que, com os seus homens, ajudou a conquistar Lisboa aos mouros. E, em vez de avançarem para a Palestina, estes homens ficam por ali e tornam-se os dinamizadores da vida económica e espiritual da zona. E o que resta da sua presença?

Hoje, para além de algumas ruínas do castelo, vemos a Igreja de S. Leonardo (até o nome do santo nos atira para França! - Leonardo de Noblat (há três santos Leonardo…), construída no séc. XIII, com três naves, um estilo gótico perfeito, com a capela do Santíssimo, à esquerda, já com traços renascentistas. A última restauração é de 1970, sendo visível à direita um pouco de um antigo mural pintado a fresco. Curioso é vermos à direita da entrada, depois de descermos uns degraus, um comprido osso de baleia (costela petrificada!?), vestígio de outros tempos. Foi-nos dito que era com ossos de baleia que se fazia o travejamento das casas!  

Os vários quadros de pintura nas paredes (séc. XVI?), por aquilo que li, aproximam-se do estilo do Mestre do Sardoal, sendo alguns atribuídos a Diogo Contreiras. À esquerda, ainda podemos admirar um presépio do séc. XVIII, da escola de Machado de Castro, vindo de um antigo convento em S. Bernardino, ali ao lado.

Em frente da Igreja, ainda persiste o pelourinho, um pouco decepado por ordem do Marquês de Pombal, numa altura em que era senhor da zona o conde de Ataíde, condenado por também ter sido incriminado no atentado a D. José. Hoje serviu de motivo para uma foto dos turistas(!!!).

Quisemos visitar o Centro Interpretativo, mas estava em obras. Outra igreja digna de visita é a de N.ª Sr.ª da Conceição, do séc. XVIII, que também aparece no vídeo.

Quando Peniche ainda era uma ilha, já Atouguia era um concelho. Aquela baía imensa, que vai até à praia e forte da Consolação, era o centro de toda a economia. Os reis olhavam para a zona com carinho. Só com a reforma administrativa de Passos Manuel (1836) é que Peniche absorveu este concelho.

E aqui fica mais um recanto que nos interessou nas nossas divagações turísticas!

António Henriques




sábado, 17 de setembro de 2022

Do Baleal à Foz do Arelho

Vamos nós ter com uns amigos à zona do Baleal - Peniche e nem sequer imaginávamos o mundo que por ali regurgita. É o “Portugal desconhecido que espera por si”.


Começando pelas praias, vemos inesperadamente praias viradas a norte e a sul (onde se viu já isto?!), separadas por um istmo que dá acesso aos carros para a ilha, outro tesouro que os geógrafos gostam de visitar, como nós, para olhar para os sofrimentos da mãe-natureza espelhados nas pedras quase em vertical que nós fotografamos, a imaginar o que o magma revoluciona por baixo e deixa em respeito a crosta terrestre…. São convulsões, chamemos-lhe assim!

Escolas de surf espalham-se ao longo da estrada, numa urbanização desgovernada, que sofre as consequências do crescimento repentino, para o qual não houve tempo de programar regras. Mas tudo decorre em paz, numa convivência apertada de jovens de origens múltiplas, que apenas querem divertir-se. E as praias vão satisfazendo todos os gostos, umas mais selvagens que outras. Curiosamente é nas praias mais “selvagens”, sem apoios turísticos, que mais abundam os carros de matrícula estrangeira!

A convite de amigos, que escolheram a zona para as escapadas benéficas que promovem a saúde mental, lá fomos ao Baleal degustar uns peixes fresquinhos e saborosos, grelhados a preceito. Eu costumo dizer que “venho para conversar e estar convosco”, mas a verdade é que não posso ignorar o sabor e a riqueza que é sentar-nos à mesa com amigos e satisfazer o olfato e o paladar, dois sentidos exigentes que uns apreciam mais que outros, naturalmente…

E depois, visitas ignorantes, surge na conversa a vontade de conhecer o mundo à volta. Imaginávamos nós que a seguir ao Baleal e a Ferrel, uma urbanização mais recente, eram as matas sem fim a dominar a paisagem… Qual quê? E vieram as surpresas. Vamos explorar naquela tarde as extensões que nos levam até à margem esquerda da Lagoa de Óbidos, levados por amigos que conhecem a zona e que por ali se recreiam de bicicleta…

Que maravilha! Urbanizações que nasceram e se expandiram na natureza virgem, facilitando acessos ao mar e à prática do golfe, hotéis de 5*****, piscinas, condomínios fechados, tantos espaços que as pessoas frequentam e lá investiram para descansar. Também era ali que o Benfica optava por fazer os estágios dos jogadores – hotel Marriott, Praia d’El Rei, antes das ótimas condições que agora desfruta no Seixal.


Continuando a descoberta, alcançámos a margem sul da Lagoa de Óbidos, pisando a areia, saudados por um arco-íris, enchendo os olhos de luz e de recordações de outras visitas, feitas em tempos remotos à margem norte, a denominada Foz do Arelho. Era jovem e um dia vem ter connosco um senhor (seria o nadador-salvador?) a gritar “vocês são uns heróis” – tínhamos atravessado a corrente que liga a lagoa ao mar e parece que é muito perigoso por nos arrastar para o oceano!... Mais tarde, com filhos pequenos, ali passámos um fim de semana nas instalações do Inatel com outro casal, para grande alegria dos menores e maiores. E ainda durante a pandemia, tivemos a coragem de partir de Óbidos para a nascente desta bela lagoa (talvez fosse a nascente do Arelho!!!). A vida também se faz de memórias, especialmente as que nos animam!

E digam lá se não vale a pena deixar a monotonia diária e arrancar à descoberta…

No regresso, passámos pelos areais sem fim de Ferrel, campos agrícolas onde se cultivam legumes sem conta, que dão de comer a muitos, como também vejo nos campos adjacentes à praia da Consolação. E os nossos hospedeiros ainda lembraram a histórica tentativa de o governo de então construir naqueles campos arenosos uma central nuclear. O povo revoltou-se e o projeto não passou do papel. E desta eu já não me lembrava, sinceramente. Mas tudo valeu neste dia, com a amizade da Luísa e do Agostinho. Obrigados!

António Henriques

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Eu estive lá

De vez em quando, surge o inesperado nos nossos dias. E eles enchem-se de uma energia que nos arrasta para momentos especiais, pegando em nós e levando-nos para longe em busca de um prazer espiritual inusitado.

Aconteceu há pouco. Por influência dos filhos, soubemos de duas exposições de arte do amigo Nelson Ferreira, uma no Museu Nacional de Arte Contemporânea-MNAC- (31/07) e outra no espaço das Capelas Imperfeitas, mosteiro da Batalha (01/08). E como a história do Nelson se mistura em parte com a dos nossos filhos, desde os bancos da Escola Preparatória Paulo da Gama, sentimos que não podíamos ficar em casa e uma mola nos empurrava. Ia valer a pena…

Essa mesma mola me obriga a escrever, pois eu ficaria incomodado se não publicitasse a beleza daqueles dias, a alegria do encontro com o artista e seus convidados e ainda com a arte que ele expõe com simplicidade, mas que nós sabemos ser fruto de uma carreira dura, longa, muito esforçada e já cheia de sucesso, mormente em Inglaterra, onde há muitos anos ele se radicou em busca de conhecimento e reconhecimento. E, na verdade, ele é hoje reconhecido pelos melhores meios artísticos, sendo solicitado por instâncias e universidades de toda a parte a dar aulas e a apresentar cursos pela internet.

E que vimos nós nestas duas exposições?

Em Lisboa, o artista, convidado para uma residência artística no MNAC, pegou em três esculturas e executou um conjunto de aguarelas apenas em azul, em que ele embrulha as estátuas nuas e frias com filtros nebulosos em várias tonalidades. E ficamos a olhar para aquelas transparências a imaginar a vida, o mistério, o abraço ao outro…

Aquela parede ao sol estava aquecida pelos quadros azuis do artista e mais quente ficou com a atuação de Cátia Alhandra, uma voz com tonalidades árabes e mediterrâneas, acompanhada pela viola de outro artista, Tiago Valentim, músico erudito que tem acompanhado outros artistas.


No mosteiro da Batalha, uma exposição bem diferente. O artista embrenha-se pela história, vai ter com novas culturas, que ele frequentou à procura de outras técnicas e executa um conjunto de ícones bizantinos que nos deixam suspensos a olhar sem entender tudo. É uma incursão pela antiguidade oriental, o fazer como os artistas faziam, sem instintos individualistas, querendo sobretudo projetar-nos para o mundo do mistério, respeitando o simbolismo das formas, que se repetem, mas que apelam mais à meditação do que à atenção por uma escrita figurativa. O artista quase que esquece a sua individualidade e coloca-se ao lado dos outros artistas, apenas a seguir uma tradição milenar. Para ser perfeito, correu mundo, frequentou mestres e foi fiel ao seu querer iniciar-se em outros ambientes da arte. Mas o nosso olhar fica preso àqueles pequenos quadros, diferentes entre si, mas todos apelativos.

Também aqui a exposição foi abrilhantada pelos mesmos artistas, Cátia Alhandra e Tiago Valentim, com uma música bem espiritual a ecoar nas voltas e arcadas das belas e perfeitas (!!!) Capelas Imperfeitas.



A pandemia empurrou-nos para dentro de casa. Mas agora temos de nos abrir ao exterior para degustar as coisas boas que por aí esperam por nós. E estas incursões culturais foram muito agradáveis.

Exposições a visitar até 30 de Outubro.

António Henriques

domingo, 31 de julho de 2022

Museu Berardo de Estremoz

Visitando azulejos

Dia de calor, sim! Mas o ar condicionado do carro também ajuda a esquecer o clima e a focar-nos no mais importante. Decidimos visitar mais um “Museu Berardo”, desta vez em Estremoz. E lá fomos em boa companhia, com os primos que também querem sair de casa e ver coisas. 

O azulejo é rei no Palácio Tocha da “Cidade branca”. E aqueles três pisos bem nos embrenharam na riqueza desta arte, que enche igrejas, palácios e casas particulares, a começar no longínquo séc. XV. Visita equiparada a esta só a tive no Museu Nacional do Azulejo em Lisboa. 

Para além da azulejaria que já integrava as paredes deste Palácio (na escadaria e em algumas salas) com grandes tapetes figurativos do séc. XVIII, vamos subindo e olhando para exemplares das técnicas mais antigas às mais modernas. Gostei das simpáticas figuras de convite que nos receberam à entrada e que costumamos ver ao cimo das escadas. 

Depois, olhámos para os velhinhos azulejos de corda seca, os alicatados (cortados a alicate!) ou os enxaquetados (combinando cores em disposições simétricas), que eu já vira no Convento de Jesus em Setúbal (muito usados durante o domínio castelhano por falta de dinheiro!). Os azulejos de corda seca e outros em relevo foram a primeira encomenda de D. Manuel I em Sevilha para o Palácio da Vila em Sintra (se não me engano!). Também são dignos de apreciação os panos de azulejos de aresta, que sucederam aos de corda seca e já usavam um molde para fabrico em série. 
Esta visita voltou a lembrar-me a influência que a cultura islâmica teve sobre a Península Ibérica, a partir de Sevilha e de Talavera de la Reina, sem esquecer o Médio Oriente, também representado neste Museu. Os desenhos geométricos e cambiantes vegetais são a maioria. 
Avançando para os séculos seguintes, chamaram-me a atenção os grandes tapetes de padrão dos séc.s XVII e XVIII, os silhares que cobrem paredes e corredores, tudo em majólica, à moda da faiança italiana. Cores, se o azul e o amarelo são típicos do séc. XVII, já no século XVIII predomina o azul. No meio de um tapete, com cercadura à volta, aparecem por vezes quadros figurativos, uma imagem de santo, um registo religioso ou a imagem do Santíssimo Sacramento. 
E curiosamente, quando chega o barroco no séc. XVIII, as formas saltam para fora das cercaduras, como se saíssem de uma prisão. Vejam isso nas fotos com os visitantes. Também olhei com interesse para um grande tapete de figuras avulsas da Flandres, que consta das nossas fotos. Eu sabia que estas figurinhas adornavam muito as cozinhas de conventos ou palácios.
Os temas, para além dos motivos religiosos, aludem a cenas campestres, de nobres a recrearem-se na caça ou na música. Mas na maioria, vemos ilustrações bíblicas. No terceiro piso, fazem parte do palácio grandes representações históricas das guerras havidas ao longo da história de Portugal.
Noto ainda a abundância de exemplares das fábricas do norte de Portugal, séc. XIX, onde os “brasileiros” desenvolveram a azulejaria, que no Brasil cresceu muito depois da independência da colónia. O azulejo passou a revestir as frontarias das casas, costume trazido para Portugal e que terminou em 1921, por uma decisão governamental a proteger os peões, que podiam apanhar com algum azulejo na cabeça!... É a fase da “democratização”, passando o azulejo das igrejas e palácios para o meio urbano.
Uma palavra para a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, séc.XIX, onde o mestre Rafael Bordalo Pinheiro imprimiu o seu saber e arte, sendo de destacar o seu azulejo em relevo e vidrado. 
Lembro ainda o esplendor e colorido da arte nova no início do séc. XX, que se continua na azulejaria moderna, cada vez a imprimir mais ao azulejo o toque de arte digna, ela que durante séculos mereceu pouco valor e atenção. É por isso que hoje se lhe dá mais importância e por aí passou a ser colecionado, roubado, exportado e desaparecido dos lugares onde devia estar.

Louvor ao Museu Berardo de Estremoz, a cidade branca.

António Henriques

terça-feira, 5 de julho de 2022

Análise de um livro

 Acabo de ler o livro do meu amigo João Pires Antunes, intitulado “Tradição e Paisagem – Penha Garcia”, edição de autor de outubro de 2021.

Conheço razoavelmente o João por leitura de textos anteriores e, por isso, sabia à partida o estilo de escrita, a visão geral sobre o mundo e mesmo o seu envolvimento pessoal nas boas causas. E depois desta leitura, que vou dizer?

Fiquei agradavelmente surpreendido com os seus largos conhecimentos sobre a tradição e ainda mais sobre a paisagem de Penha Garcia. Ao reconstituir os modos de vida no seu tempo de criança, as vivências familiares que ele descreve como “narrador participante” (assim se dizia há uns anos atrás!), numa linguagem original, usando termos regionalistas, ele não fala de cor… Os trabalhos agrícolas, a ocupação do tempo de uma família, que vive da terra e dela extrai o sustento numa luta sem fim, são memórias vivas do autor. Como tu sabes tanto de lavoura! Falas das estações do ano e relacionas cada uma delas com os variados ciclos agrícolas – sementeiras, mondas, apanha da azeitona, o forno… Eu transportei-me para a minha meninice… E imaginei-me na tua casa simples, com o asado na cantareira e o copo de latão emborcado para se beber água! Ou a família à volta da mesa com a colher na mão a tirar o alimento do barranhão. Também na minha casa não havia pratos em 1945…

Depois, o João enche de vida o ambiente, trazendo para o dia a dia os animais domésticos, a Navarra, a égua Safira ou a gata Xica, para já não falar dos que enriquecem a alimentação – galinhas, coelhos, aves… E fala dos cheiros!

Impressionou-me a quantidade de nomes de ervas que foste buscar para dar sabor, ou o sem-número de animais que povoam aqueles campos, ou ainda a imensidão de aves que enchem os ares e que tu sabes escutar, num sentir irmanado com a natureza, cujo silêncio te enche de emoção poética – “retiros de prazeres puros” (p. 107).

Sobre a paisagem, se o autor privilegia a sua Manga do Gabão – “o meu berço” (108), ele sabe olhar para o longe e apreciar cada recanto. Se se delicia com os “campos policromáticos” (36), ele tem razões: «A paisagem…parecia outra, pois a policromia matizada do matagal em flor, onde sobressaíam as papoilas brancas das estevas, a urze rosada e rasteira, a giesta com os seus cachos de flor amarela e ainda o tojo florido e agressivo, contribuíam para esta paisagem distinta» (80/81).

E se o enlevo é muito – “é um deleite para os nossos olhos e um lavar da alma” (100), lá onde “a vida rebenta por todos os sítios” (36) -, também se entristece ao ver o “arvoredo que cresce desgovernado” (108), “terras que mais parecem selvagens, entregues a si próprias” (94). Faltam as famílias de outros tempos, que arroteiem e domestiquem os campos. Por isso, até os javalis «já perderam a vergonha» (92) (rica personificação!). Num grito de alma, clama: «aguardamos serenamente por mentes iluminadas que encontrem soluções que minimizem este drama. Porque a desertificação avança»… (115) E parece que nem o grande amendoal a plantar nos concelhos de Fundão e Idanha-a-Nova o deixam repousado (124), mas ele sabe que acabou o trabalho braçal e só as máquinas podem amanhar aquelas terras para novas culturas. Oxalá!

Só mais duas considerações:

1 – Noto às vezes que o texto se apresenta um pouco a saber a linguagem oral e com discordâncias entre elementos ou algumas vírgulas em lugares que eu acho errados. Talvez seja exigente!  Ex.: -“Grande variedade são utilizadas em chás e tisanas”(52); - “as noites escureciam como breu que arrepiavam os mais afoitos” (18) seria melhor dizer: “as noites escureciam como breu e arrepiavam os mais afoitos” ou “as noites escureciam como breu que arrepiava os mais afoitos”; - “Penha Garcia … sabe bem receber as visitas” devia ser “Penha Garcia … sabe receber bem as visitas”.

2 – Os regionalismos são ricos em palavras com sentidos muito próprios, que escapam ao comum dos leitores. Deixo uma lista do livro para os leitores se entreterem: malhadas (9), cinchos (13), relheiros (15), furda (15), surripanços (17), barranhão (18), gorroal (85), brama (93), acarrar (117).

Parabéns, João! Escreve, que te dá vida… E nós aprendemos e deleitamo-nos!

António Henriques

sexta-feira, 25 de março de 2022

Escrita sem rumo

 Andamos atormentados pela crueza e insensatez da guerra, que não nos dá alento para sair da moleza dos dias. Mas a vida continua e há que fazer por ela... De contrário, lá se vai a gozação dos dias, a sensação viral de estarmos vivos, com saúde e prestáveis para algo.

Assim, apetece-me hoje escrever sem rumo, levado pelo pensamento que voa de um lado para outro, como fazem alguns escritores que nos deixam às vezes perdidos no meio das páginas. E começo:

Nos últimos dias, a coluna negra do nosso ANIMUS SEMPER, à esquerda, chama a atenção para os comentários que me vêm chegando, alguns tão ricos que me apetecia pegar neles e criar novas mensagens para os leitores descuidados. 

Um deles é da Luísa Nogueira, irmã do grande companheiro destes últimos anos, o Joaquim Nogueira, a quem me ligam momentos especiais que já não voltam. A Luísa foi colega do João Lopes na faculdade (como o mundo é pequeno!) e as primeiras vezes que a vi foi na apresentação dos dois livros do Joaquim, envolvida também na apresentação dos mesmos. Fico a saber que ela é uma das visitas frequentes do nosso blogue (ontem foram 96 Visitas e 277 Visualizações), o que me dá ânimo para investir o meu esforço nesta pequena praça de convívio entre colegas dos mesmos seminários.

Mas os meus pensamentos giram logo para outras paragens, num dia em que o Abílio Martins me envia um email com uma canção africana, que por acaso abro e aprecio do princípio ao fim. Até a trouxe para aqui, pode ser que mais alguém se deleite com estas surpresas africanas, um continente que ainda espera a sua vez para entrar na cena mundial. Eu da África tenho 47 dias, uma férias inesquecíveis, correndo quase todos os cantos, embora me tivesse demorado em Sá da Bandeira, a atual Lubango, onde o meu irmão trabalhava na Acajobel. Porque falas nisto? É que a Acajobel tinha nos sócios dirigentes um Dr. Nogueira, também da família dos Nogueiras da Várzea dos Cavaleiros e de quem estamos a falar aqui. E foi ele que sorrateiramente, escapando às tropas da UNITA, foi ao aeroporto levar umas latas de leite em pó que alimentaram a bebé do meu irmão durante as semanas em que os portugueses fugiram com as tropas sulafricanas para a Namíbia. Acho que o Joaquim Nogueira, quando saíu com a esposa do Congo Belga, também passou por Sá da Bandeira no regresso à metrópole. E lá fez tão boa obra que houve gente desse tempo que me pediu o telefone da irmã para lhe apresentar palavras de pêsames e conforto.

Olho para África e sofro com as fragilidades e sofrimento dos africanos, mas tenho de confessar que Srª de África.jpgé também com a África que se faz a minha história, não só porque foi de lá que o meu irmão trouxe a rica mulher que muito bem cuida dele, como também foi de África que trouxe a imagem de Nossa Senhora, isto em 1970, que ainda hoje me protege e à minha família, acompanhando-nos no lugar mais íntimo da casa. Aqui ao lado está a Virgem. E como veio parar às minhas mãos? Em Luanda, fui recebido pelo conterrâneo, o Abílio Martins, com quem estive dois ou três dias. Não foi só o P. Horácio a receber a generosidade deste Antigo Aluno. Também a mim chegou a sua presença benfazeja e a oferta desta bela imagem em madeira... E já lá vão 52 anos...

De Luanda, onde também estive com o P. Eusébio, ainda fui de comboio a Vila Salazar estar com o meu colega de curso António Lucas Rodrigues, que faleceu poucos meses depois num brutal acidente de viação, ele que me levou a Malanje, onde pude conviver com outro colega, o P. José Mendes F. Antão. Paz às suas almas!

Para não me alongar, volto ao email do Abílio que me trouxe este vídeo em baixo. Nos últimos tempos, quando o Joaquim Nogueira se sentia debilitado, era a enviar emails que ele comunicava connosco, imagens belas deste mundo lindo. Não sou o único a falar deste seu gesto, embora alguns emails tivessem ficado por abrir por falta de tempo, eu que estava voltado para outros compromissos. Como posso dizer mal das redes sociais se são elas que me ligam ao mundo? Ainda por cima com a prisão covidiana?!

Vá, oiçam esta Avé Maria pelas crianças africanas:

António Henriques