terça-feira, 18 de março de 2025

Como nasceu a Casa do Educador do Seixal

 

Uma visão muito pessoal

1 - A primeira reunião

No aconchego da minha casa, gozando a merecida jubilação, aí por volta de julho de 2001, recebo um estranho convite para um encontro, com almoço e tudo, na Escola 2+3 de Corroios, convite dirigido a todos os professores aposentados do ensino preparatório e secundário da AP 14…

Levei o convite à guisa de mais uma proposta de convívio e distração para matar saudades do ambiente da escola e nada mais… Recebidos pelo prof. Álvaro Sendas, Presidente da Direção ao tempo, lá encontrei outros nomes sonantes, senhores presidentes, António Veríssimo e Manuel Pires. Almoçámos alguma «carne à jardineira» no refeitório da Escola, um pouco constrangidos no meio de tantas caras desconhecidas… Éramos mais de 30 os felizes aposentados presentes, aqueles que tinham dado visibilidade à trupe dos “reformados”… Sim, parece que dantes não havia esta classe de gente. Era agora que iam surgir fornadas de professores aposentados, dada a democratização do ensino, que trouxe para a escola muitos mais alunos e seus professores acompanhantes…

O almoço decorreu com toda a normalidade. Não havia toalhas, centros de mesa adornados de flores e papelinhos com dizeres poéticos, nem ninguém preparara a sala a prever o nascimento esplendoroso de qualquer movimento salvífico… No mínimo, íamos tentando arranjar conversa e simpatia com os estranhos que nos calharam ao lado e à frente, nada que assustasse muito quem passou 30 ou 40 anos enfrentando seres desconhecidos todos os anos…

E veio o encontro após o almoço. Aí, a conversa derivou para assuntos mais sérios. Os dirigentes da AP 14 (Área Pedagógica n.º 14), que juntava todas as escolas do concelho, exprimiram o desejo de criar um grupo de dinamização que pudesse trazer novidade ao isolamento dos reformados, um traço de união e de solidariedade que nos facilitasse a vida de relação. Alguém referiu que os reformados do 1.º ciclo se reuniam num almoço anual. Podíamos encostar-nos a eles, porque não? Vieram apelos às nossas qualidades de trabalho e de liderança, apontaram-se nomes dos presentes dispostos a colaborar, resultando daí um registo de dez voluntários. E eu no meio deles!...

De alguns, nunca mais lhes vi a sombra. De outros soube que, mais tarde, disseram que podiam ter sido presidentes (mas como? Se nem sócios chegaram a ser?...). Restaram dois: o Álvaro Sendas, que presidiu à Assembleia-geral da Casa do Educador durante dois mandatos, e eu. E porquê eu? Talvez o resto da história consiga dar resposta.

2 - Os sete almoços do 1.º ciclo

Pelas minhas contas, foi em 1997 que a Direção Escolar do Seixal iniciou a tarefa de juntar os reformados a ela ligados num almoço anual de confraternização. Presidia à iniciativa a Prof.ª Augusta Rodrigues, Delegada Escolar ao tempo.

Tudo era preparado com pompa e circunstância. A Câmara Municipal apadrinhava a iniciativa. Fazia-se uma aguarela alusiva ao acontecimento para perpetuar o momento, até se fazia uma miniexposição com trabalhos dos professores artistas, montada e desmanchada no mesmo dia por exigência do restaurante. Nas mesas, papéis decorativos a relevar a festa e uma prendinha para cada um dos comensais… E quem pagava? Eram os próprios aposentados, naturalmente, que a Câmara já gastava o dinheiro no mês do idoso, outubro, onde alimentava de festa e comida quase um milhar deles, alguns ainda pouco idosos e muitos acompanhantes…

Dois ou três de nós resolveram avançar e participar no repasto de 2001. E repetimos em 2002, já com o apoio expresso da CES, a associação nascente… Festas bonitas, com certeza, mas demasiado fugazes para tanto foguetório. Decorridos anos, ainda se fala com exaltação desses almoços, que «iam alimentando o sonho» de constituirmos uma associação, um espaço de encontro dos professores para além da escola. A verdade é que se andou a sonhar durante seis anos e ninguém deu o passo para realizar o tal sonho…

Os professores do 1.º ciclo cultivam entre si uma relação mais próxima que os dos outros ciclos. Habituados a colaborar e conviver anos a fio no mesmo espaço, em iniciativas conjuntas, eles relacionam-se mais uns com os outros e cultivam o sentido de camaradagem e de classe mais que os outros… Nas escolas preparatórias ou secundárias, a dispersão dos professores por várias turmas, o saltitar, hora a hora, de classe e de ano dispersam-nos de tal modo que é difícil conseguirmos o sentido do coletivo. Quando muito, constituem-se grupos de amigos em razão das disciplinas lecionadas, dos horários aceites, das idades ou da proximidade geográfica…

Acontece ainda que, ao contrário dos restantes ciclos em que a hierarquia se dilui até ao ministério, no primeiro ciclo havia uma chefia concelhia, uma Delegação que acompanhava de perto a vida das escolas e dos professores. Daí a «necessidade» de todos fazerem boa figura e acompanharem os passos da Delegada. Por isso, foi do primeiro ciclo que mais adesões vieram quando se passou à ação e se deram os primeiros passos no sentido da criação da Casa do Educador…

 3 - Primeiros passos da nova associação

Quando se parte do zero para criar qualquer coisa, andamos por ali a desbravar terreno sem saber bem o que se vai plantar. Foram assim os primeiros tempos, com reuniões de uns tantos voluntários sem experiência associativa. Uma coisa é a vida na Escola, outra são as diligências e burocracias necessárias para pôr de pé uma associação. A liberdade de associação que a Constituição consagra obriga a muitos formalismos legais, para sermos reconhecidos.

Eu já estava envolvido há anos na direção de outra associação, o CEFEM – uma associação de índole cristã para apoiar e promover excluídos, nomeadamente ciganos e imigrantes africanos. Mesmo assim, pouca era a minha tarimba… Mas tinha ali uma boa ajuda. E foi isso que fez com que nos primeiros tempos eu me sentisse com um olho aberto em terra de cegos!

Após alguns encontros informais na Delegação Escolar do Seixal, com sede na Amora, durante o ano de 2001, foi em 2002 que se deram passos reais no sentido de criar a nova associação. A partir de um Grupo Pró-associação, constituiu-se um Grupo Dinamizador que foi passando a ideia para as escolas, especialmente para os seus dirigentes, no sentido de conseguir adesões à iniciativa. Convidaram-se professores, auxiliares da ação educativa e administrativos e, finalmente, em 11/05/2002, na presença de 98 aderentes, Presidente da Câmara e Vereadora da Educação, reunidos na  Escola n.º 1 de Miratejo, foi aprovada por unanimidade a Comissão Diretiva Provisória que o Grupo Dinamizador propusera com vista à criação de uma associação. Era um conjunto de dez pessoas, algumas bem interessantes e trabalhadoras, outras mais disponíveis para bater palmas ao trabalho dos ativos.

Dada a minha disponibilidade e algum conhecimento, era eu que me deslocava e contactava as instituições. Foi assim com o Registo Nacional das Pessoas Coletivas, com instituições associativas em busca de estatutos, com o notário ou com a jurista em questões de direito processual.

A primeira grande tarefa foi a redação dos estatutos. De maio a outubro de 2002, um grupo de cinco elementos (eu e mais quatro professores do 1.º ciclo) levou a sério este trabalho, mesmo durante os meses de verão, próprios para férias. Com três ou quatro exemplares de estatutos cedidos por associações similares, a tarefa mesmo assim foi difícil, sobretudo porque nos íamos apercebendo do rigor da lei. E tudo era discutido ao pormenor, a começar pelo nome a dar à novel associação, que ficou registado como “Casa do Educador do Concelho do Seixal” (CES), o primeiro de três nomes que tivemos de levar ao Registo Nacional de Pessoas Coletivas.

Posso dizer que trabalhei sobretudo com o Gabriel dos Santos, com bons conhecimentos de Informática. Depressa ficámos só quatro, pois uma colega desapareceu sem se despedir e nunca mais a vi na vida associativa até hoje. Com o Gabriel criei empatia e durante vários anos vivi em muito boa relação com ele. Éramos os dois únicos homens do grupo, capazes de não olhar muito às horas de trabalho e aos compromissos em casa… Depois, as surpresas da vida trucidam a normalidade das relações e um AVC apanhou-lhe todo o lado esquerdo, tornando complicada a sua colaboração com a Casa do Educador. A bonomia do Gabriel ainda me surpreendeu quando, em conversa, ele se alegrava por ter ficado com a mão direita capaz de trabalhar no computador! E ainda trabalhou… Passando a viver na casa de uma colega que lhe prestava ajuda, ele enviava por correio electrónico o seu trabalho. Obrigado, amigo! Os anos vão passando e hoje ninguém sabe quem é o Gabriel. Não fora o Facebook, eu próprio nada saberia dele, pois as distâncias e o envolvimento familiar nem sempre ajudam… Alegrava-me muito vê-lo a explorar a sua veia poética, a que colava os quadros que pintou enquanto pôde, ligando-se de modo recorrente às paisagens e valores da Beira (serra da Estrela), onde ele nasceu para a vida.

Finalmente, em 19 de outubro de 2002, no Auditório do Centro de Formação Profissional do Seixal, Rua Infante D. Augusto, Amora, foram aprovados os estatutos que tinham sido enviados para os 98 aderentes, que nós chamávamos pré-associados. À última hora, ainda foram retocados, por sugestão da jurista avençada da Câmara Municipal, mas tudo se decidiu conforme a lei. Desta vez, já éramos só 34 votantes. E o prof. Álvaro Sendas teve mesmo necessidade de publicamente justificar a ausência dos professores do preparatório e secundário, que não estavam muito dispostos a gastar tempo e dinheiro nestas coisas. Nessa reunião, foram ainda aprovados o Regulamento Eleitoral e o montante da joia e da quota anual a pagar pelos associados, que apenas foi alterada passados 22 anos.

Mas como é isso possível? Manda a verdade que diga que em 2006, quando entrámos no segundo mandato, a direção a que eu presidia propôs a subida de quota numa assembleia-geral. Mas foi entendido por alguns presentes que a CES não prestava aos sócios no ativo serviços que justificassem o aumento das quotas. As atividades da associação dirigiam-se mais aos aposentados. Assim, se precisávamos de mais dinheiro, que se cobrasse mais aos que beneficiavam das iniciativas da CES. E foi essa a opinião prevalecente até hoje. Passou a ser normal cobrar aos não-sócios uma taxa extra quando se inscrevem nas viagens e visitas de estudo.

4 - Oficialmente, nascemos como associação em 28/10/2002, com a celebração da escritura pública no notário Farinha Alves, em Setúbal, meu amigo de longa data, companheiro de juventude, que é a fase em que as amizades se firmam para sempre. Afastados por muitos anos sem sabermos nada um do outro, esta escritura permitiu o reatamento da nossa amizade pura, desinteressada e alegre. No ato da escritura, estiveram presentes seis pessoas. A foto colhida no momento, e que ilustra a Folha Informativa n.º 3, mostra todas as caras muito sérias, exceto a minha. Porque será? A minha boa disposição tinha muitas razões: - conseguíamos finalizar o primeiro passo da Associação; - sentia-me num ambiente cheio de longas e felizes recordações, que o Farinha Alves me inspirava; - e todas estas atividades iam favorecendo o sentimento de autoestima e o gosto de viver como aposentado…
E porque fomos a Setúbal? Muito simplesmente porque os cartórios do concelho nos obrigavam a marcar a escritura para muito mais tarde!

Em 2 de fevereiro de 2003, é publicada no Diário da República a súmula dos estatutos da Casa do Educador. Tínhamos agora seis longos meses para prepararmos as primeiras eleições dos corpos sociais.

Ainda andávamos a sonhar… Na Folha Informativa n.º 3 (um conjunto de duas páginas A4), aparece por nove vezes a palavra “sonho” ou seus derivados. Acho que foi sonho a mais, sobretudo foi sonho pouco consistente, pouco realista, nomeadamente quando se fala de equipamentos destinados a proteger os sócios na situação de velhice ou invalidez. A meu ver, só a boa relação que a Presidente, como Delegada Escolar, tinha com as entidades autárquicas fazia pensar que por ali era possível adquirir algum apoio substancial para os nossos “sonhos”. Muito cedo se começou a falar de um terreno que a Câmara nos ia oferecer para construirmos um lar. Mas aqueles tempos já não eram propícios. A Câmara começava a ser vista como grande gastadora de dinheiros que faltavam… E os apoios à nova associação só com o passar dos anos passou a ser consistente. Tivemos de provar o que valemos!

Desde o início deste projeto, as reuniões de trabalho realizavam-se habitualmente na sede da Delegação Escolar do Seixal, Rua Dr. Emídio Guilherme Garcia Mendes, na Amora. Após a formalização jurídica da Associação, que nos estatutos tinha como residência a supradita morada, chegou a altura de legalmente podermos utilizar aqueles espaços, depois de formalmente fazermos o pedido à Câmara.

Estava a Delegação Escolar em fase de liquidação, devido à alteração da orgânica escolar que o Ministério da Educação levou a efeito em 2003, creio eu. Esta encerra em dezembro de 2004 e a sua ex-delegada, profª Augusta Rodrigues, continua como a presidente da CES. Assim, por acordo com a Câmara, aquele espaço e respetivo recheio foram sendo utilizados por nós para as reuniões dos responsáveis, até que oficialmente os espaços foram distribuídos por duas entidades: a sala maior, onde funcionara a secretaria da Delegação, foi para a Escola Básica n.º 1 de Amora, e para a Casa do Educador ficavam a outra sala e a cozinha com uma pequena casa de banho. A casa de banho maior, à entrada, ficaria como serventia comum das duas entidades.

5 – As primeiras eleições

Depois de termos passado por ser um Grupo Pró-Associação e por uma Comissão Diretiva Provisória, aprovados os Estatutos e o Regulamento Eleitoral, chegava o momento de escolher os primeiros órgãos sociais da Casa do Educador do Concelho do Seixal. A Assembleia Eleitoral teve lugar na mesma Escola n.º 1 de Miratejo em 6/06/2003, em que votaram muitos dos 150 (?) pré-associados. Para que conste, nomeio os primeiros elementos dos três órgãos sociais: Assembleia geral – prof. Álvaro Sendas, Direção – prof. Augusta Rodrigues, Conselho Fiscal – prof. Maria Fernanda Jacinto.

Naturalmente, os espaços eram curtos para os nossos sonhos, mas já davam para desenvolver «atividades de convívio, lazer e ocupação dos tempos livres». Célebres ficaram as quartas feiras com o chá e «conversas à solta» das 15h às 18h, que era no princípio o tempo de que dispúnhamos no contexto da Delegação Escolar. Depois abrimos mais dias e horas. E depressa nos ocupámos com as viagens e visitas de estudo ao perto e ao longe…

Em 2006, começa um novo mandato. A Direção a que eu presido volta-se mais para a comunidade e imediatamente começa a lançar a ideia da criação de uma Universidade Sénior, que iniciou as aulas em 15 de janeiro de 2007. Logo a seguir, graças sobretudo ao querer da prof. Antonieta Henriques, criámos nova valência, a Cesviver, destinada a pessoas mais idosas.

Por ali nos mantivemos até 20 de dezembro de 2008, data em que nos mudámos para as atuais instalações na Rua Cons. Custódio Borja, Amora.
Uma parte da cozinha passou a ser a sala da Direção, isolada por um biombo. Na outra parte, havia atividades – pintura, manualidades, cursos de Informática e mais... E no corredor, entre a cozinha e a sala, funcionava a Galeria de Arte para dar a conhecer os trabalhos dos nossos artistas e outros. E foi também ali que instalámos o primeiro funcionário, o Sr. Edmundo, que o Centro de Emprego nos cedeu como POC, pagando nós apenas os subsídios de refeição e de transporte.

Bem me lembro de ter escrito então que andávamos «afogados em gente». Quantas horas gastei à procura de salas em escolas e instituições para albergar alunos da Unisseixal? Valeu a pena? Sim, valeu! Arrependido, nunca! Cansado, sim. Alegre, em extremo, sobretudo por ver colegas meus a fazer melhor que eu.
E de semente pequenina nasceu esta grande árvore capaz de dar sombra a muitos… A maior alegria que tenho é ver que o que alguns começaram teve continuadores fortes, capazes de prosseguir a obra…

António Henriques

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Cantinho da Antonieta 4

OS SANTOS POPULARES

OS MASTROS NA MINHA ALDEIA NA DÉCADA DE 50

Os Santos Populares sempre se comemoram por todo país e a Cabeça Gorda não foge à regra. No Santo António e especialmente no São João, lá estavam os moradores preocupados com as festas dos Santos Populares.

Umas semanas antes, já um grupo de homens se reunia para tratar do mastro, que se desejava mais bonito que o da aldeia vizinha.

Chegavam num carro puxado por um macho ou dois, os troncos bem grossos, um em especial que seria o do centro mais alto e mais forte, com aproximadamente 3 ou 4 metros. Os outros 5 ou 6 eram um pouco mais baixos. Todos eles se cobriam com verdura - alecrim e rosmaninho preso com arames aos troncos e alindados com flores feitas de papel de seda assim como as bandeirinhas, tudo isto confeccionado pelas senhoras mais prendadas da aldeia. Faziam-se cordas de bandeiras de várias cores coladas em cordas de sisal.

Colocava-se o mastro principal ao centro; era escavado no chão um buraco bem fundo para que o mastro ficasse bem seguro. A uma distância de 2 ou 3 metros do centro colocavam-se os mastros mais pequenos em círculo, à volta do mastro grande, e também bem presos ao chão. E prendiam-se os fios das bandeiras previamente enfeitados, que partiam do mastro do centro para os outros mais pequenos e que compunham o espaço da festa. O chão deste espaço também era coberto de verdura, creio que era rosmaninho.

Nunca vi dançar à volta destes mastros. O que via eram grupos de homens e mulheres a caminhar de braço dado à volta do mastro, cantando cantigas alentejanas. Eu, agarrada à saia da mãe, confundia-me com a multidão que assistia ao espetáculo.

Era lindo, mas não tive ocasião de voltar a ver.

Janeiro de 2025

Antonieta Henriques


NOTA: Os mastros não eram bem assim, mas há alguma semelhança!


quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Cantinho da Antonieta 3

A praia da minha infância

A caminho do rio Guadiana

Eram uns dias passados numa pequena casa junto a um moinho de água, propriedade de familiares nossos. Provavelmente estávamos no mês de julho ou agosto do ano de 1949.

De véspera, cozia-se o pão, os bolos e preparava-se o cesto com chouriço, toucinho, bacalhau, feijão e outras iguarias de modo a assegurar comida para 6 ou 7 pessoas durante 4 ou 5 dias.
A fruta era comprada nos campos, nos meloais junto ao rio.

O peixe pescava-se com um cesto. Passavam os cardumes e com mestria atirava-se um cesto fundo de cana e, quando se puxava o cesto, os peixes ficavam dentro a saltar enquanto a água escorria pelos buracos entre as canas.

A carne também aparecia de vez em quando, pois os donos do moinho eram donos de um talho e passavam por lá com alguma frequência.

O nosso pai preparava o carro puxado por um macho. Em cima do carro, colocavam-se cadeiras e outros pertences necessários à viagem, pois isto não era só descanso, as mulheres aproveitavam para lavar as lãs de ovelha que faziam parte dos colchões da casa de família e, para isso, levávamos umas canastras para lavar as lãs no rio. No carro, seguiam 2 casais e as crianças, os mais velhos sentados nas cadeiras, os mais novos ajeitavam-se como podiam ao colo ou sentados nas canastras.

No Alentejo, há uma regra que põe homens dum lado, mulheres a outro e essa regra também se aplicava ali em todas as situações, na mesa, na dormida e nos banhos.

Dormíamos todas numa divisão grande junto à cozinha e no chão, em cima de cobertores que iam também para serem lavados no rio. Os homens tinham uma divisão mais pequena onde dormiam.

A hora dos banhos também era divertida. O moleiro colocava uma corda no ouvido do moinho e as mulheres e as crianças em camisa de noite agarravam-se à corda e tomavam banho em fila na direção da força da água, a que chamavam “o ouvido do moinho”. Durante os banhos, era fácil ouvir a mãe a chamar os mais afoitos para não se afastarem das margens e os mais temerosos a serem incentivados a entrar dentro de água.

Os rapazes e os homens tomavam banho à parte e quando queriam, pois todos eles já sabiam nadar e davam uma volta de barco, liberdade que não pertencia às crianças nem às mulheres.

Mas as crianças também tinham alguma liberdade. Tomavam conta umas das outras e pescavam marisco, embora recomendadas para não o fazer “porque o marisco fazia febres”, diziam as mães. No grupo das crianças também se praticava alguma hierarquia: enquanto os mais velhinhos pescavam, a maninha mais nova ficava longe da água a chorar, mas em pouco tempo ficava quieta e calada para não atrapalhar a pesca clandestina. Eu pesquei e comi marisco e ainda cá estou com 81 anos e não apanhei as tais febres. Fiz parte do grupo das crianças que desobedeciam aos adultos.

Os mariscos não se comiam crus. Colocávamos os ameijoões em cima do lume, que estava sempre aceso, pois era lá que as mulheres cozinhavam as refeições. Os ameijoões abriam com o calor e ficavam com um molhinho espetacular que ainda hoje me cria água na boca. Não sei se os adultos chegaram a saber... E provar tal pitéu também duvido que o fizessem, pois eles tinham de dar o exemplo às crianças.

Que experiência maravilhosa e que gozo e alegria me dá reviver aqueles dias!

Antonieta Henriques

12/11/2024

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Cantinho da Antonieta 2

 3 - UMA FAMÍLIA DE GATOS

Começo esta composição com dúvidas. Será que posso chamar a três gatos uma família de gatos? Aqui não há pai, não há mãe e não há filhos. Não compliquemos, eles tornaram-se amigos e os amigos podem viver juntos e porque não serem UMA FAMÍLIA?
São então “os três da vida airada “. Juntaram-se pelas circunstâncias da vida de cada um.
O primeiro estava dentro de um saco abandonado, cresceu alimentado por uma seringa - o que mais se assemelhava à maminha da mãe. Cresceu, fez-se um gatarrão mal-educado que assustava qualquer veterinário. Foi lhe dado o nome de Speck. Em casa era um animal normal, que respeitava os seus tutores, era dono e senhor de uma casa enorme que não queria partilhar com mais ninguém. Mas certo dia aparece um gatinho simpático e franzino, sem espírito de luta, a quem chamámos de Bolinhas, que resolveu morar no jardim do Speck. Não podemos dizer que a convivência era pacífica, mas o Bolinhas foi persistente até o Speck se habituar à sua presença e o deixar entrar em casa; viveu no jardim dentro de uma caixa um mês ou dois e um dia, o Bolinhas lá foi para a casa grande. Como não juntou tralha, não havia bagagem, a mudança tornou-se fácil. Teve cama própria, mas gostava mais de partilhar a cama com o amigo, provavelmente porque era inverno e ele ficava mais quentinho.

Com o Natal, chegou uma visita - o Lock, de ar saudável e estatura que merecia respeito; na primeira noite, ficou fechado num quarto porque os desacatos eram tantos que não deixavam ninguém pregar olho. O tempo passou e todos se habituaram à presença uns dos outros. Mas o Lock era visita, só aparecia de vez em quando com os seus tutores. Quando chegava, já não precisava de apresentações, conheciam-se bem e eram felizes. Numa das últimas viagens, quando chegou à casa de férias já não encontrou o Speck, chefe do grupo a quem o Lock tinha bastante respeito.  Certo dia, veio de férias e, como viajava de avião, chegou muito assustado com uma certa turbulência aérea e os tutores acharam por bem deixá-lo com o Bolinhas, que estava a passar por grande sofrimento devido à falta do amigo e sua figura de referência.
Estes dois amigos viveram felizes durante alguns anos, mas sempre a disputar o colo da tutora, colo que pertenceu por direito ao chefe Speck. O Bolinhas admitiu o Lock como chefe, mas achava que o colo da tutora era dele por herança. Era divertido ver os desacatos com dois gatos grandes num colo pequeno a tentarem ajeitar-se como podiam. A verdade é que não ficavam muito tempo porque a posição devia ser incómoda, mas o tempo não para e a vida tem o seu limite. O Lock adoeceu e não viveu muito tempo a fazer companhia ao Bolinhas. Lá ficou o Bolinhas a lamentar-se escada abaixo, escada acima numa grande tristeza. No meio de tanto azar, o Bolinhas procurou algo que o libertasse de tanta dor e voltou ao colo da tutora, agora com um colo só para ele; em especial à noite, ficava consolado e mais calmo! 
Mas ele percebeu qual o antídoto para o seu sofrimento e durante algum tempo pedia colo como uma criança, mesmo durante o dia. O tempo passou e o Bolinhas voltou ao normal. Agora passa o dia nos seus afazeres no quintal e só volta à noite para se consolar no colo que o libertou.
A vida reserva-nos surpresas, aquele animal frágil, sem ambições e, agora sozinho, com dificuldade em fazer amigos, ainda vive feliz e tem quase 18 anos; para nossa alegria e bem-estar, conquistou os nossos corações e é um resistente.
06/11/ 2024
Antonieta Henriques



sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Cantinho da Antonieta 1

 

Começar aos 80 anos!

INTRODUÇÃO
A arte da escrita não nasce connosco. Vai-se adquirindo com a prática e com algum estudo. De vez em quando, temos surpresas... Pessoas surgem inesperadamente e passam a ter êxito, escrevendo com afã para jornais e revistas. Outras alimentam círculos fechados de partilha de conhecimentos e de vivências, apoiados em blogues, onde corre a vida e se ensaia a comunicação amiga entre os associados. E aí nascem autênticos escribas que gostamos de ler, gente anónima no mundo cultural, mas apreciados no seu círculo de amizade. 

Pessoalmente, tenho dado a mão a muita gente e tenho incentivado alunos e amigos a usarem a escrita como ocupação dos dias, especialmente como respiração das leituras que vamos fazendo. Ler e escrever podem ser duas faces da mesma actividade. E já me surgiram surpresas agradáveis, que ajudaram amigos a viverem com mais alegria e maior gosto.

Desta vez, no entanto, a surpresa ainda é maior. A conviver com ela durante quase 50 anos, a vê-la ocupar os seus tempos livres com as cores, as tintas e os lápis, eis que agora a menina minha esposa vem ter comigo e pergunta-me se posso ler e avaliar o que ela escreveu e se valia a pena continuar. Eu sabia que as suas últimas leituras eram do Miguel Esteves Cardoso, um livro interessante, onde o nome do autor é mais importante que o título, que parece envergonhado, de tão humilde que se apresenta: "Como escrever".
A verdade é que este livro levou a Antonieta a experimentar caminhos novos na expressão e aos oitenta anos aqui está com textos muito lindos, a recuperar momentos da sua vida e a ressuscitar emoções que alimentam as suas horas. E vejam lá os caros leitores se vós também não podeis dar vida aos dias, mesmo quando eles já estão inundados de outros afazeres.
A. Henriques

OS PRIMEIROS TEXTOS AOS 80 ANOS

1 - A menina garrafa

Olá, eu conheço-te, és a menina garrafa que eu encontrei em Portimão. Mas aqui na Amora, és igual a tantas outras e tens de concorrer com o jarro da água. Ele ficou ali parado, com ar importante, presunçoso e com água até ao gargalo. De repente, olhei para ti e interessei-me pelo teu conteúdo. O jarro da água, admirado, teve de esperar até eu beber a tua água. Ficaste vazia, mas existes para alguém e esse alguém sou eu. Menina garrafa, eu não te abandono porque já fazes parte da minha vida.
Ficaste surpreendida, mas orgulhosa e feliz, sabendo que vales e serves para alguém. Não saíste do teu caminho, não atropelaste ninguém. O nosso valor depende de nós, não depende da apreciação dos outros.
Menina garrafa, que grande aventura!
Sabes o que está a acontecer? Eu estou a escrever e surpreendida com tudo o que estou a presenciar. Tu vais fazer parte do meu 1º conto. Estou feliz com a tua companhia, amiga!
Achas que o conto é pequeno?
Tal como os homens não se medem aos palmos, também os contos não se avaliam pelo número de palavras que dele fazem parte.
Menina garrafa, foi um prazer conhecer-te.
17/10/2024
Antonieta Henriques

2 - As incansáveis formigas
Ser criança nos anos 40 e 50 era maravilhoso. Podia olhar em volta, admirar os pássaros, os grilos, as aranhas, os gafanhotos, as borboletas de variadas cores, as carochas e as incansáveis formigas com quem passei momentos de lazer, aprendizagem e criatividade. A verdade é que as formigas continuam a ser misteriosas para mim, saem daqueles buracos muito perfeitos e correm numa azáfama à procura de comida ou outras coisas. Muitas vezes carregam pesos maiores que elas próprias, com modos de quem precisa vencer e não desistir, dando tantas vezes exemplo a quem não as vê e lhes põe os pés em cima.
Com formigas não dá para conversar, mas eu tentei algumas vezes.
Linda formiguinha, toma atenção!  Eu resolvi alindar a tua casa, sei que não tens tempo e eu gosto de fazer coisas. Eu faço-te um quintal com um muro, um jardim com árvores, flores em redor e talvez uma piscina...
Mesmo sem o seu aval, construí jardins à volta dos buracos e passei horas a educá-las para não pisarem a relva e usarem só os caminhos que eu lhes fizera. Os resultados foram nulos, para deceção da menina que queria ser professora e não arquiteta.
Mas percebi que elas foram muito pacientes comigo, não abandonavam a casa e provavelmente ajudaram-me, no meu percurso de vida, a ser paciente com as crianças, a entender o outro que nem sempre fala, mas é único nas suas opções.
22 – 10 - 2024
Antonieta Henriques

NOTA: BREVEMENTE SEGUIRÃO OUTROS TEXTOS.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Aos 50 anos do P. Escarameia

Em Vila Velha de Ródão - o que eu queria dizer

Na longa, mas não fastidiosa, homenagem ao P. António Escarameia nos seus 50 anos ao serviço daquela paróquia, desde que soube do evento prometi a mim próprio que estaria presente.

Razões são várias, a começar pela ligação pessoal que me prende àquela terra, onde fiz a segunda classe e onde o prof. Benjamim insistia com o meu pai para eu continuar a estudar.

Mas sobretudo está em jogo a vivência de muitos anos no Seminário com o homenageado.

Em poucas palavras, se eu falasse publicamente, começava por elogiar a Câmara Municipal por este gesto nobre de agradecer o trabalho de um cidadão que gastou já 50 anos da sua vida a animar a vida cristã de muita gente, num serviço humilde e ignorado junto de todos nas horas felizes e nas horas tristes. Além disso, dedicou-se abertamente a muitas iniciativas que muito desenvolveram a comunidade, desde a escola aos grupos culturais de teatro e música e ainda à direção de instituições sociais – Bombeiros e Misericórdia, se não estou em erro… E, para admiração dos mais céticos, até andou à frente de muitos em Informática, inclusive na arte da programação e em “sites e blogues”.


O segundo elogio ia para o homenageado. Se aqueles muitos presentes na homenagem, linda na expressão dos rostos que acorreram ao Centro de Artes, conhecem bem o P. Escarameia dos últimos 50 anos, eu conheço outro Escarameia, dos tempos da juventude.

E na sua juventude, eu convivi com este aluno cheio de curiosidade, com tendência para saber mais profundamente, como foi a sua relação com o órgão, que sozinho aprendeu no seu 5.º ano e depressa passou a ser o organista-mor do seminário! Em Portalegre, no Seminário Maior, enquanto outros corriam para os campos a fazer desporto, o Escarameia corria para o órgão e deleitava-se no perfeccionismo das suas execuções musicais.

Humilde e colaborador, sem querer dar nas vistas, não se furtava ao trabalho naquelas atividades extra com que preenchíamos as horas, levados por alguns professores mais entusiastas. Estávamos nos finais dos anos 50 e tinha chegado de Roma o Sr. Dr. Marcelino (mais tarde bispo de Aveiro). A ideia maior era aproximar-nos das pessoas a quem mais tarde iríamos servir como padres. Criaram-se clubes de arte, literatura, cinema…. Alimentávamos uma Página Cultural mensal no jornal de Castelo de Vide e dentro de portas também se preparavam sessões, em que os oradores eram os próprios alunos. Com tantas mudanças, o P. Escarameia chega a dizer: «vivi o velho e o novo testamento dos seminários».

Bem me lembro de uma vez se terem distribuído temas para alguém preparar. Eu aceitei um sobre naturalismo e o Escarameia, um pouco forçado, viu-se com três temas em mão. Eu próprio lhe disse que era demais!  Passadas umas semanas, o P. Milheiro começa a querer saber como estavam as coisas. Todos iam falando e o Escarameia…calado! O P. Milheiro, sempre atarefado, ainda pergunta: - então, Escarameia, como vai o teu trabalho? Resposta rápida: - está quase, Sr. Padre.

Fui ter com ele no fim, admirado com a resposta. E diz-me ele: - ora, está quase a começar! Isto não era mentir, era uma simples reserva mental! Mas os trabalhos um dia apareceram, como era nosso timbre.

Com a pandemia, o Escarameia, fechado em casa, achou que era tempo de escrever as suas crónicas sobre o nosso passado nos seminários. Com uma memória muito fiel, atira para o papel mais de 50 deliciosos acontecimentos em textos tão bem escritos que nos fazem lembrar “A cidade e as serras” do Eça. Escreve, organiza, imprime e encaderna a obra com mais de 100 páginas, que depois oferece aos amigos. Que grande escritor, que grande tipógrafo, que grande artista!

E é desta obra, que nós lemos com muito agrado por serem episódios pitorescos dos nossos tempos de “meninos e jovens”, que eu confirmo o seguinte:

- o P. Escarameia vive enamorado com a vida, feliz por ter sido escolhido por Deus para padre!

- com humildade, sabe reconhecer que também erra e pede desculpa;

- muito observador, tanto aprendeu como o ti Manel tratava as sardinhas do pequeno-almoço, que «saiam fritas e assadas ao mesmo tempo», como não cala as injustiças que presenciou na educação dos seminários e sabe ser crítico; mas gosta muito da amizade entre nós: «a alegria da nossa juventude e da nossa amizade entre colegas mitigava os nossos medos e receios».

- pensa criticamente as práticas da Igreja e reconhece que muito há que fazer, especialmente no que toca à mulher que na Igreja «ainda hoje não serve para algumas coisas»… Ou ainda quando, em idade avançada, os padres vivem «abandonados… sem sabermos onde vamos reclinar a cabeça na velhice…». Ai, António Escarameia, não estás longe do que todos nós estamos a sentir também quanto à falta de estruturas de acolhimento dos idosos!

Olha, com a tua boa vontade e alegria, ainda estás aí capaz de também alegrar muitos e seres feliz a fazer os outros felizes. Gostei tanto do teu dia 1 de Outubro de 2023!.

António Henriques




terça-feira, 26 de setembro de 2023

O trono e o altar - Um livro testemunho

Estou a escrever este texto a pensar no amigo que nos deixou há poucos meses sem se despedir e a quem estavam ligados laços de muita estima e elevada consideração. A morte é assim: repentinamente, vão-se as tarefas e adeus a tudo e a todos, sem contemplação…

É no velório do meu amigo, José Tomaz Ferreira, que tenho conhecimento do seu livro, um testemunho escrito, publicado no ano anterior, onde ele mergulha no ambiente histórico que entreteceu e condicionou toda a sua existência com a consciência aguda e a solidez do querer que o identificavam.  Intitula-se o livro “O TRONO E O ALTAR – EM TEMPOS DO ESTADO NOVO”, da Edit. VERITAS, Guarda, numa edição de 300 ex. e 182 páginas.

Foi de rompante que li esta pérola e foi para degustar melhor o seu conteúdo que o voltei a ler. Para quem viveu ou se interessa pelos ambientes eclesiásticos entre os anos 60 e 74, encontrará aqui uma história pitoresca nos seus eventos e deliciosa nos meandros que tecem as relações entre Igreja e o Estado Novo, cada um a defender a sua verdade, muitas vezes toldada de conveniência e conluio, contra o espírito de Evangelho (“A verdade vos libertará!”).

O autor começa por descrever em poucas páginas a história das relações entre o Estado e a Igreja, desde o roubo descarado de todo o património e expulsão das ordens religiosas por Joaquim António de Aguiar, o Mata-frades, no séc. XIX até à Lei da Separação, apressadamente decretada pela República, de que resulta uma declarada subordinação do clero ao Estado. É neste estado das coisas que a chegada de Salazar, após a Ditadura e a Constituição de 1933, serena os espíritos cristãos, que veem nele o arauto de novos tempos. A amizade de Salazar e do Cardeal Cerejeira nos 11 anos de convivência em Coimbra em defesa dos princípios cristãos (Salazar, antigo seminarista de Viseu e católico praticante!) faziam adivinhar novos tempos…


Neste aconchego, ainda por cima com a assinatura de uma Concordata com a Santa Sé, a Igreja passou a conviver com a situação política, assumindo como uma bênção a proteção do Estado Novo. A hierarquia católica abençoava o regime, mas ia esquecendo os seus podres – regime de partido único, controlador das consciências através da censura e da Pide e com uma rede imensa e escondida de informadores-delatores sem qualquer direito ao contraditório.

É nesta malha obscura que o José Tomaz se vê enredado sem sequer se dar conta. Estas são as manápulas do poder – o TRONO do título – que insidiosamente vai controlando os seus movimentos. Quanto à hierarquia religiosa daquele tempo, os respeitáveis bispos não estavam habituados ao diálogo e muito menos a contrariar as tendências políticas – era o ALTAR submisso, com exceções raras como o caso do bispo do Porto.

Depois de ter estudado em Roma, em 1961 o novo padre é convocado pelo bispo da Guarda para o seminário com mais dois colegas para a função de prefeitos, isto é, responsáveis diretos dos alunos na condução da vida diária da comunidade. Logo aqui, começam as incongruências: o bispo não permite que o jovem padre vá a Roma fazer exame à última cadeira para completar o curso. E o jovem padre obedece, pois é esta a sua postura pessoal.

Durante cinco anos, esta equipa disciplinar usa a sua juventude e saber para criar no seminário um ambiente de boas relações, educando os jovens seminaristas nos valores humanos e cristãos.  Contra o ritualismo (em que bastava obedecer), eles incitam os alunos no espírito de iniciativa, na relação de confiança (pela proximidade), no saber justificar as ações, não dando ordens sem as justificar, no respeito pelo outro, o que origina uma mentalidade nova.

Parece que esta postura desagradava a alguém, especialmente àqueles que não toleravam críticas ao estado das coisas na diocese e no país. Aos ouvidos do Bispo e dos colegas mais velhos esta atitude apodava-os de “desorientados”. Mas o pior era o que chegava às centrais de informação política através dos informadores anónimos e contra estes delatores ninguém se podia defender. E eles existiam até “à mesa das refeições no Seminário” (pág. 54).

Na diocese da Guarda, o P. José Tomaz era muito considerado e com facilidade era cooptado pelos seus colegas para o representarem no Conselho Presbiteral. E nunca ninguém se aproximou dele a pedir explicações ou a fazer críticas: “entre o Prelado e a minha pessoa … um silêncio apocalíptico”! p. 81)

No seu dia-a-dia, a equipa sacerdotal ia fazendo o seu serviço e o número de seminaristas que chegavam às ordens sacras não destoava dos anos anteriores: nos cinco anos anteriores a 1961, ordenaram-se na Guarda 37 padres. Entre 1961 e 1966, com estes suspeitos formadores, ordenaram-se 32 e mais 3 que foram para ordens religiosas…

Em 1966, o Bispo renova por completo a equipa de formadores, voltando à educação tradicionalista, em que até a correspondência era censurada. E durante 11 anos a diocese da Guarda não viu mais nenhum novo sacerdote. O que leva o meu amigo a friamente dizer que o bispo inverteu a parábola dos talentos: «premiou os estéreis e pôs a ferros os que conseguiam produzir!». (pág.72)

Conclusão: o José Tomaz e colegas criaram no seminário uma “célula comunista”, que afinal dera frutos só após eles terem saído (!!!), pois “não fomentava a piedade, a obediência, o amor ao sacerdócio” (pág. 73-74). E num relatório da Pide de 1968, a chave da “expulsão” deles do seminário era: «incutiam no espírito dos Seminaristas ideias políticas contrárias ao actual regime» (pág. 86). O TRONO insidiosamente sempre se imiscuia nas coisas do ALTAR…

As ideias novas do Vaticano II iam moldando as mentalidades. Até o Bispo da Guarda, em 1966, quer o “Movimento por um Mundo Melhor” na sua diocese. Fazem-se dois cursos e nos dois cursos, a pedido do prelado, vota-se no sacerdote que vá orientar o Movimento. Como nas duas votações é eleito o “desorientado” padre José Tomaz, o Bispo não o nomeia!...

Mas tudo se encaminha para o desterrar para Lisboa: «em nome da obediência, coloquei a decisão nas mãos do Bispo, assegurando-lhe que estava disposto a fazer o que ele mandasse». (p. 89)

Nomeado Assistente Nacional-Adjunto do Escutismo – C.N.E., desenvolveu a formação religiosa dos seus dirigentes, mas depressa notou que, mesmo aí, a conivência com as orientações do poder político era flagrante e a má fama que trazia da Guarda chegou a alguns dirigentes da Junta Central e até o Arcebispo de Braga, Assistente Nacional, chega a desqualificá-lo num Encontro Nacional com o epíteto de SACRISTÃO. Mesmo assim, registo o que ele diz na pág. 92: «Devo ao Escutismo os momentos mais gratificantes… foi nele que cimentei amizades que até hoje se mantêm intactas…» (NOTA muito pessoal: foi o escutismo que também me aproximou deste grande homem, sempre alegre e íntegro).

A Pide continua atenta e sente-se a sua presença nas nomeações para professor nos colégios, de onde ele provia ao seu sustento. Por razões políticas, não conseguiu sequer o Diploma de Ensino Particular por “falta de idoneidade moral e cívica” (p. 149). Nos primeiros anos, a sua aceitação como professor de Moral passava com a frase: «não oferece garantias de defesa dos superiores interesses do Estado”, mas em 1972/73 “a Pide endureceu a sua posição a meu respeito” (p. 118) e foi vetado para o cargo de Assistente religioso da Mocidade Portuguesa na Escola Pedro de Santarém. Esta função religiosa dependia do Patriarca de Lisboa e numa audiência com ele, mais uma vez o meu amigo ficou a saber que ninguém, nem mesmo o Cardeal ia «exigir que o Estado não interferisse no governo da Igreja… Tudo era feito a bem da Nação… Mas sempre com o trono a exigir a protecção do altar.» (p. 142)

Esquecido pelo seu Bispo, impedido de se sustentar pela Igreja, o José Tomaz virou-se para a vida civil e geriu com muito talento a revista Lumen e escreveu para jornais.

António Henriques

domingo, 12 de março de 2023

Foi há sete anos!

 AMORA AGRADECIDA

Permitam-me que hoje elogie a Igreja na pessoa do pároco que serviu a nossa paróquia durante 16 anos. Também tenho o direito de dizer bem, já que outros se arrogam o direito de só dizer mal. AH

 A paróquia de Amora despediu-se hoje do seu pároco, que aqui serviu nos últimos 16 anos. O P. Pedro Granzotto vai deixar muitas saudades e também levará muitas, como lhe disse hoje o Sr. Bispo.

Não lidei com ele de perto, mas nas muitas vezes que nos aproximámos pelas mais variadas razões, ora institucionais ora pessoais, sempre vi neste sacerdote um homem sereno, dedicado, marcado pela missão de servir o melhor possível a comunidade religiosa de Amora.

Na hora da despedida, vem à mente a obra maravilhosa que nos deixa.

Estou a pensar na nova Igreja, que custou a arrancar durante anos e só com ele se concretizou. Uma obra que com muita determinação ele foi erguendo, conseguindo cativar para a mesma os seus paroquianos. Ainda está a ser paga, mas sem ele a obra não se fazia.

Estou a pensar também na Igreja viva que com ele se foi desenvolvendo. Curiosamente, é consolador ver os 800 lugares da Igreja ocupados na missa dominical. Já nem falo da missa de hoje, em que tudo o que era espaço foi ocupado por muitos bancos de plástico ou por pessoas em pé. Lembro-me do tempo da sua construção, em que tinha ficado reservada uma sala ao lado para servir de capela para as missas da semana, mas que nunca serviu, pois a assistência era bastante para a missa se celebrar na Igreja Nova.

Além do espaço da Igreja, o complexo oferece muitas salas para os vários movimentos e catequese da paróquia, além de um salão de festas para umas 400 pessoas e com um belo palco, com muitas funções.

A paróquia de Amora é servida pelos padres da Congregação Scalabriniana, votada ao apoio dos migrantes. Por isso, a substituir o P. Pedro Granzotto, tomou hoje posse outro scalabriniano, o P. Geraldo, permanecendo connosco os outros três sacerdotes da equipa.

O P. Pedro, há 16 anos, chegou pobre e agora sai pobre. Deixa toda a riqueza connosco. É um exemplo muito forte de dedicação, que a nossa Igreja oferece ao mundo, mais um daqueles valores que me prendem à comunidade cristã. Outro exemplo é o respeito que ele tinha por todos, nutrindo o gosto de facilitar a vida a todos os grupos e etnias existentes, que se manifestam com os seus particularismos em ocasiões especiais.

Ao P. Pedro e ao P. Geraldo, os dois na foto ao lado, desejo as maiores felicidades. E apelo a que olhem sempre para as pessoas como dizia o Evangelho de hoje: ricos ou pobres, bons e maus, merecedores ou culpados, todos cabem na Igreja de Deus.


António Henriques

- Texto pulicado no blogue "AnimusSemper" em 11/09/2016 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

As palavras deste Natal

Os dias correm apressadamente na ânsia de tudo preparar para a grande festa de Natal. Queiramos ou não, todos somos apanhados na enxurrada das compras, das limpezas, dos presentes, porque naquele dia queremos todos fazer boa figura, receber bem as visitas, oferecer-lhes o melhor, não por vaidade, mas sobretudo por íntimos sonhos de ver todos agradados e irmanados nos valores da família em comunhão.

Para que o blogue vos apresente alguma novidade, ainda encontrei uns momentos para escrever sobre as palavras que mais me fizeram pensar nos tempos que correm. Vamos lá!

Tem sido tema de conversa a palavra “húbris”, que alguém utilizou num contexto político-social especial, criticando sentimentos visíveis numa entrevista em que se usam palavras nada lisonjeiras para adversários políticos.

Húbris é daquelas palavras inusuais, estranhas, que não aparecem na linguagem comum. Eu não a conhecia e o grande dicionário Lello, de 1980, também não a conhece. Mas, pelos vistos, existe e o Dicionário online Priberam dá-lhe este significado: “Orgulho excessivo. = ARROGÂNCIA, INSOLÊNCIA, SOBERBA”. Confesso que estes sentimentos não são apropriados a um político sensato, mas foi com eles que o crítico apodou o sr. político. Não sei se se vai realizar o que premonitoriamente a Infopédia (Dicionário Porto Editora) diz: « … um desafio aos deuses e que acarreta a ruína de quem assim age».

Em sentido contrário, surge o antónimo de húbris - "sofrósina", outra palavra que foge ao léxico corrente, que também não consta do Lello Universal. Estas duas palavras são translação direta do grego. Para este antónimo, o Dicionário Priberam apresenta este significado: “Qualidade do que é prudente, comedido, moderado ou sensato. = MODERAÇÃO, PRUDÊNCIA, SENSATEZ”.

Estas, sim, são palavras adequadas à quadra natalícia e não só! Todos devíamos ter a humildade suficiente para dosear a crítica ao nível dos semelhantes, sabendo que todos têm direito ao nome e à participação pública. É assim que se começa o caminho para as ditaduras, que são situações com que nos vemos confrontados, sobretudo ao olharmos para o que a Federação Russa está a fazer à Ucrânia, que também nos atinge por ricochete.

E cá vem agora outra palavra dos nossos dias – a PAZ! Vou citar o Padre António Vieira, um clássico que vale a pena:

«Não Há Paz no Mundo

Enchem a boca de paz, e não há tal paz no mundo. E senão, quem há tão cego, que não veja o mesmo hoje em toda a parte? Dizem que há paz nos reinos, e os vassalos não obedecem aos reis: dizem que há paz nas cidades, e os súbditos não obedecem aos magistrados: dizem que há paz nas famílias, e os filhos não obedecem aos pais: dizem que há paz nos particulares, e cada um tem dentro em si mesmo a maior e a pior guerra. Havia de mandar a razão, e o racional não lhe obedece; porque nele, e sobre ela domina o apetite. (...) A paz do mundo é guerra que se esconde debaixo da paz. Chama-se paz e é lisonja: chama-se paz, e é dissimulação: chama-se paz, e é dependência: chama-se paz, e é mentira, quando não seja traição.»

Padre António Vieira, in "Sermões"

Digamos, para concluir, que não é a ausência de guerra a verdadeira paz. Esta requer a
humildade, a aceitação do outro, a colaboração, o diálogo entre iguais, o respeito pelos direitos dos outros… E ainda há poucos dias eu ouvia o P. Bento Domingues sugerir que o melhor para vivermos em paz é cada um perguntar “o que posso fazer pelos outros?”.

A todos os meus leitores, um Feliz Natal.

António Henriques