quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Cantinho da Antonieta 3

A praia da minha infância

A caminho do rio Guadiana

Eram uns dias passados numa pequena casa junto a um moinho de água, propriedade de familiares nossos. Provavelmente estávamos no mês de julho ou agosto do ano de 1949.

De véspera, cozia-se o pão, os bolos e preparava-se o cesto com chouriço, toucinho, bacalhau, feijão e outras iguarias de modo a assegurar comida para 6 ou 7 pessoas durante 4 ou 5 dias.
A fruta era comprada nos campos, nos meloais junto ao rio.

O peixe pescava-se com um cesto. Passavam os cardumes e com mestria atirava-se um cesto fundo de cana e, quando se puxava o cesto, os peixes ficavam dentro a saltar enquanto a água escorria pelos buracos entre as canas.

A carne também aparecia de vez em quando, pois os donos do moinho eram donos de um talho e passavam por lá com alguma frequência.

O nosso pai preparava o carro puxado por um macho. Em cima do carro, colocavam-se cadeiras e outros pertences necessários à viagem, pois isto não era só descanso, as mulheres aproveitavam para lavar as lãs de ovelha que faziam parte dos colchões da casa de família e, para isso, levávamos umas canastras para lavar as lãs no rio. No carro, seguiam 2 casais e as crianças, os mais velhos sentados nas cadeiras, os mais novos ajeitavam-se como podiam ao colo ou sentados nas canastras.

No Alentejo, há uma regra que põe homens dum lado, mulheres a outro e essa regra também se aplicava ali em todas as situações, na mesa, na dormida e nos banhos.

Dormíamos todas numa divisão grande junto à cozinha e no chão, em cima de cobertores que iam também para serem lavados no rio. Os homens tinham uma divisão mais pequena onde dormiam.

A hora dos banhos também era divertida. O moleiro colocava uma corda no ouvido do moinho e as mulheres e as crianças em camisa de noite agarravam-se à corda e tomavam banho em fila na direção da força da água, a que chamavam “o ouvido do moinho”. Durante os banhos, era fácil ouvir a mãe a chamar os mais afoitos para não se afastarem das margens e os mais temerosos a serem incentivados a entrar dentro de água.

Os rapazes e os homens tomavam banho à parte e quando queriam, pois todos eles já sabiam nadar e davam uma volta de barco, liberdade que não pertencia às crianças nem às mulheres.

Mas as crianças também tinham alguma liberdade. Tomavam conta umas das outras e pescavam marisco, embora recomendadas para não o fazer “porque o marisco fazia febres”, diziam as mães. No grupo das crianças também se praticava alguma hierarquia: enquanto os mais velhinhos pescavam, a maninha mais nova ficava longe da água a chorar, mas em pouco tempo ficava quieta e calada para não atrapalhar a pesca clandestina. Eu pesquei e comi marisco e ainda cá estou com 81 anos e não apanhei as tais febres. Fiz parte do grupo das crianças que desobedeciam aos adultos.

Os mariscos não se comiam crus. Colocávamos os ameijoões em cima do lume, que estava sempre aceso, pois era lá que as mulheres cozinhavam as refeições. Os ameijoões abriam com o calor e ficavam com um molhinho espetacular que ainda hoje me cria água na boca. Não sei se os adultos chegaram a saber... E provar tal pitéu também duvido que o fizessem, pois eles tinham de dar o exemplo às crianças.

Que experiência maravilhosa e que gozo e alegria me dá reviver aqueles dias!

Antonieta Henriques

12/11/2024

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Cantinho da Antonieta 2

 3 - UMA FAMÍLIA DE GATOS

Começo esta composição com dúvidas. Será que posso chamar a três gatos uma família de gatos? Aqui não há pai, não há mãe e não há filhos. Não compliquemos, eles tornaram-se amigos e os amigos podem viver juntos e porque não serem UMA FAMÍLIA?
São então “os três da vida airada “. Juntaram-se pelas circunstâncias da vida de cada um.
O primeiro estava dentro de um saco abandonado, cresceu alimentado por uma seringa - o que mais se assemelhava à maminha da mãe. Cresceu, fez-se um gatarrão mal-educado que assustava qualquer veterinário. Foi lhe dado o nome de Speck. Em casa era um animal normal, que respeitava os seus tutores, era dono e senhor de uma casa enorme que não queria partilhar com mais ninguém. Mas certo dia aparece um gatinho simpático e franzino, sem espírito de luta, a quem chamámos de Bolinhas, que resolveu morar no jardim do Speck. Não podemos dizer que a convivência era pacífica, mas o Bolinhas foi persistente até o Speck se habituar à sua presença e o deixar entrar em casa; viveu no jardim dentro de uma caixa um mês ou dois e um dia, o Bolinhas lá foi para a casa grande. Como não juntou tralha, não havia bagagem, a mudança tornou-se fácil. Teve cama própria, mas gostava mais de partilhar a cama com o amigo, provavelmente porque era inverno e ele ficava mais quentinho.

Com o Natal, chegou uma visita - o Lock, de ar saudável e estatura que merecia respeito; na primeira noite, ficou fechado num quarto porque os desacatos eram tantos que não deixavam ninguém pregar olho. O tempo passou e todos se habituaram à presença uns dos outros. Mas o Lock era visita, só aparecia de vez em quando com os seus tutores. Quando chegava, já não precisava de apresentações, conheciam-se bem e eram felizes. Numa das últimas viagens, quando chegou à casa de férias já não encontrou o Speck, chefe do grupo a quem o Lock tinha bastante respeito.  Certo dia, veio de férias e, como viajava de avião, chegou muito assustado com uma certa turbulência aérea e os tutores acharam por bem deixá-lo com o Bolinhas, que estava a passar por grande sofrimento devido à falta do amigo e sua figura de referência.
Estes dois amigos viveram felizes durante alguns anos, mas sempre a disputar o colo da tutora, colo que pertenceu por direito ao chefe Speck. O Bolinhas admitiu o Lock como chefe, mas achava que o colo da tutora era dele por herança. Era divertido ver os desacatos com dois gatos grandes num colo pequeno a tentarem ajeitar-se como podiam. A verdade é que não ficavam muito tempo porque a posição devia ser incómoda, mas o tempo não para e a vida tem o seu limite. O Lock adoeceu e não viveu muito tempo a fazer companhia ao Bolinhas. Lá ficou o Bolinhas a lamentar-se escada abaixo, escada acima numa grande tristeza. No meio de tanto azar, o Bolinhas procurou algo que o libertasse de tanta dor e voltou ao colo da tutora, agora com um colo só para ele; em especial à noite, ficava consolado e mais calmo! 
Mas ele percebeu qual o antídoto para o seu sofrimento e durante algum tempo pedia colo como uma criança, mesmo durante o dia. O tempo passou e o Bolinhas voltou ao normal. Agora passa o dia nos seus afazeres no quintal e só volta à noite para se consolar no colo que o libertou.
A vida reserva-nos surpresas, aquele animal frágil, sem ambições e, agora sozinho, com dificuldade em fazer amigos, ainda vive feliz e tem quase 18 anos; para nossa alegria e bem-estar, conquistou os nossos corações e é um resistente.
06/11/ 2024
Antonieta Henriques



sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Cantinho da Antonieta 1

 

Começar aos 80 anos!

INTRODUÇÃO
A arte da escrita não nasce connosco. Vai-se adquirindo com a prática e com algum estudo. De vez em quando, temos surpresas... Pessoas surgem inesperadamente e passam a ter êxito, escrevendo com afã para jornais e revistas. Outras alimentam círculos fechados de partilha de conhecimentos e de vivências, apoiados em blogues, onde corre a vida e se ensaia a comunicação amiga entre os associados. E aí nascem autênticos escribas que gostamos de ler, gente anónima no mundo cultural, mas apreciados no seu círculo de amizade. 

Pessoalmente, tenho dado a mão a muita gente e tenho incentivado alunos e amigos a usarem a escrita como ocupação dos dias, especialmente como respiração das leituras que vamos fazendo. Ler e escrever podem ser duas faces da mesma actividade. E já me surgiram surpresas agradáveis, que ajudaram amigos a viverem com mais alegria e maior gosto.

Desta vez, no entanto, a surpresa ainda é maior. A conviver com ela durante quase 50 anos, a vê-la ocupar os seus tempos livres com as cores, as tintas e os lápis, eis que agora a menina minha esposa vem ter comigo e pergunta-me se posso ler e avaliar o que ela escreveu e se valia a pena continuar. Eu sabia que as suas últimas leituras eram do Miguel Esteves Cardoso, um livro interessante, onde o nome do autor é mais importante que o título, que parece envergonhado, de tão humilde que se apresenta: "Como escrever".
A verdade é que este livro levou a Antonieta a experimentar caminhos novos na expressão e aos oitenta anos aqui está com textos muito lindos, a recuperar momentos da sua vida e a ressuscitar emoções que alimentam as suas horas. E vejam lá os caros leitores se vós também não podeis dar vida aos dias, mesmo quando eles já estão inundados de outros afazeres.
A. Henriques

OS PRIMEIROS TEXTOS AOS 80 ANOS

1 - A menina garrafa

Olá, eu conheço-te, és a menina garrafa que eu encontrei em Portimão. Mas aqui na Amora, és igual a tantas outras e tens de concorrer com o jarro da água. Ele ficou ali parado, com ar importante, presunçoso e com água até ao gargalo. De repente, olhei para ti e interessei-me pelo teu conteúdo. O jarro da água, admirado, teve de esperar até eu beber a tua água. Ficaste vazia, mas existes para alguém e esse alguém sou eu. Menina garrafa, eu não te abandono porque já fazes parte da minha vida.
Ficaste surpreendida, mas orgulhosa e feliz, sabendo que vales e serves para alguém. Não saíste do teu caminho, não atropelaste ninguém. O nosso valor depende de nós, não depende da apreciação dos outros.
Menina garrafa, que grande aventura!
Sabes o que está a acontecer? Eu estou a escrever e surpreendida com tudo o que estou a presenciar. Tu vais fazer parte do meu 1º conto. Estou feliz com a tua companhia, amiga!
Achas que o conto é pequeno?
Tal como os homens não se medem aos palmos, também os contos não se avaliam pelo número de palavras que dele fazem parte.
Menina garrafa, foi um prazer conhecer-te.
17/10/2024
Antonieta Henriques

2 - As incansáveis formigas
Ser criança nos anos 40 e 50 era maravilhoso. Podia olhar em volta, admirar os pássaros, os grilos, as aranhas, os gafanhotos, as borboletas de variadas cores, as carochas e as incansáveis formigas com quem passei momentos de lazer, aprendizagem e criatividade. A verdade é que as formigas continuam a ser misteriosas para mim, saem daqueles buracos muito perfeitos e correm numa azáfama à procura de comida ou outras coisas. Muitas vezes carregam pesos maiores que elas próprias, com modos de quem precisa vencer e não desistir, dando tantas vezes exemplo a quem não as vê e lhes põe os pés em cima.
Com formigas não dá para conversar, mas eu tentei algumas vezes.
Linda formiguinha, toma atenção!  Eu resolvi alindar a tua casa, sei que não tens tempo e eu gosto de fazer coisas. Eu faço-te um quintal com um muro, um jardim com árvores, flores em redor e talvez uma piscina...
Mesmo sem o seu aval, construí jardins à volta dos buracos e passei horas a educá-las para não pisarem a relva e usarem só os caminhos que eu lhes fizera. Os resultados foram nulos, para deceção da menina que queria ser professora e não arquiteta.
Mas percebi que elas foram muito pacientes comigo, não abandonavam a casa e provavelmente ajudaram-me, no meu percurso de vida, a ser paciente com as crianças, a entender o outro que nem sempre fala, mas é único nas suas opções.
22 – 10 - 2024
Antonieta Henriques

NOTA: BREVEMENTE SEGUIRÃO OUTROS TEXTOS.