domingo, 12 de fevereiro de 2017

"SILÊNCIO" - o filme

Dá que pensar...

Hoje conseguimos ter a oportunidade de ir ver o filme de Scorcese, que nestes últimos tempos tem levantado opiniões contraditórias. Sinceramente, gostei. Uma das razões porque gostei foi ter passado todo aquele tempo (161 minutos!) bem desperto, sem passar pelas brasas.
O tema do filme atira-nos para o Japão do séc. XVII, quando a defesa dos valores tradicionais do Japão pelo shogunato leva à perseguição de tudo o que seja estrangeiro. E o cristianismo é o alvo principal e o símbolo maior de culturas estranhas, que desde S. Francisco Xavier se desenvolveu na sociedade japonesa e era preciso erradicar. No centro do vulcão, estão os jesuítas, quer pela sua força quer agora pela sua atitude perante os perseguidores. O édito de 1614 a proibir a fé cristã e a expulsar os missionários não foi suficiente e as comunidades cristãs continuavam na clandestinidade.
Mas chega à Europa a notícia de um célebre Padre Ferreira, ilustre missionário e formador de missionários, ter apostatado da sua fé perante os sofrimentos a que foi submetido, passando a viver segundo os valores japoneses e o budismo. Logo outros heróis se lançam à fogueira: mesmo perante a ameaça de morte certa, dois padres (Rodrigues e Garupe) conseguem entrar no Japão para em segredo contactar e animar as comunidades cristãs e descobrir o tal apóstata, até para o demover.
Todo o ambiente do filme se caracteriza por uma extrema violência contra os cristãos e especialmente os padres. Queimá-los com água a ferver de nascentes termais, pregá-los na cruz no meio de marés vivas até morrerem, decapitá-los, pendurá-los de cabeça para baixo com a cabeça na fossa, tudo contribui para dissuadir as pessoas a abandonar a sua fé, e, no caso dos padres, a grande preocupação era levá-los a apostatar para assim eles darem o exemplo aos outros cristãos.

E chega de história.
O mais importante para mim foi a encarniçada luta das autoridades japonesas contra a mentalidade cristã desta gente. Aquelas pobres almas, de fé simples, que diziam que pagavam todos os impostos, viviam aterrados com a chegada dos chefes. Mas não largavam a sua fé, pois Cristo prometera-lhes o paraíso, coisa que na terra lhes estava vedado. Há uma veneração exagerada pelo padre e muito mais por todos os símbolos cristãos, a ponto de o padre se ver obrigado a desfazer-se do seu rosário e distribuir as contas pelos aldeãos.

No meio dos fiéis, também surge um Judas, de nome Kichijiro, que tanto serve para esconder os padres e levá-los em segurança a outras povoações, como os entrega por boas quantidades de prata; capaz de apostatar pisando a imagem sagrada para não sofrer, vem depois, por várias ocasiões, a pedir a confissão num retorno à condição inicial de cristão como gente digna! É a figura mais triste, um invertebrado, que quase tira ao filme o ar de seriedade.

A personagem principal do filme, o Padre Rodrigues, levado por princípios rígidos de educação cristã, não cede em nada e ali está ele a servir em boa consciência a Igreja Católica. Ele e os simples cristãos encontram-se ameaçados por um poder político dominador, que condenava mesmo à morte. Caso o último padre resistente abjurasse a sua religião, os cristãos não teriam mais o suporte da sua fé. Daí toda a tramóia em volta do Padre Rodrigues, que se vê confrontado com a morte de cristãos, postos a sofrer horríveis castigos à sua frente. 
A tragédia é esta: se apostatares, os cristãos não sofrerão mais. Agora, escolhe: queres manter a tua fé e ver teus irmãos sofrer e morrer ou, por amor aos outros, renuncias à tua mentalidade cristã? Basta colocar o pé em cima da imagem de Cristo...
Até o célebre Padre Ferreira, apóstata, é trazido para convencer o seu antigo aluno: “Por amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. Mas nem este consegue grandes avanços. O Padre Rodrigues defende «a verdade» de Deus e não dobra. Mas colocado perante situações extremamente desumanas, lá aceita, sem coragem e sem alegria, renunciar ao seu passado e iniciar uma vida diferente, ao lado de uma mulher com um filho, que ele recebeu de outro condenado.

Ter-se-á convertido? Aqui está o maior mistério do filme. Tudo se encaminhava para o extermínio da fé, que nas terras japonesas não fazia sentido, «eram um pântano onde não cresciam ideias novas», como se diz no filme. Mas este, mais que falar de derrota, apela para a vitória da fé, mesmo que esta seja apenas secreta e íntima. A própria mulher que o acompanha deposita às escondidas, junto do cadáver do padre, o pequeno crucifixo que um dia um camponês lhe oferece.

Interrogações:

1 – Quem consegue torcer o nosso íntimo, por maiores castigos que nos inflijam? Podemos tornar-nos “cristãos-novos” ou “budistas confessos” sem uma adesão íntima e sincera? Saí do filme a relevar esta omnipotência da consciência humana, que não dobra. Vamo-nos mudando pela força da razão, pela lógica dos conhecimentos e ainda pelo testemunho dos outros, o que explica as verdadeiras conversões.
2 – Quando é que a nossa fé é pura, consciente, bem esclarecida? É uma interrogação forte do filme, em que se diz, às vezes, que a fé cristã e a budista são iguais, numa alusão à inculturação que os jesuítas praticaram (Deus seria o sol, ou a natureza..., alega o apóstata padre Ferreira). A verdade é que as pessoas deixam-se matar por serem cristãs, como hoje outros matam à espera das 70 virgens que os receberão no paraíso...
3 – Li que a noção de Deus no filme está mal situada, como se Ele fosse um estranho a isto; pois eu achei que um Deus paciente, compassivo e tolerante está bem presente no gesto continuado do padre a absolver o pecador-judas.
4 - Agora, outra questão é o silêncio de Deus, que nada diz em nenhuma circunstância, parecendo deixar-nos ao abandono neste mundo de tantas interrogações. E quem não sentiu já este silêncio de Deus? O diálogo connosco próprios, o testemunho dos irmãos e da história é que nos vão animando. Estarei eu certo? Caminhar na fé é sempre andar com algum nevoeiro, como era aquele ambiente soturno, escuro, em grande parte das cenas do filme.
Fico-me por aqui para não pesar muito.


António Henriques




1 comentário:

  1. Gostei muito do filme. Adorei estas considerações, pois penso que a fé um mistério e falar de mistérios torna-se sempre pouco esclarecedor e difícil de comentar. Parabéns António...

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