Dá que pensar...
Hoje conseguimos ter a oportunidade de ir ver o filme de
Scorcese, que nestes últimos tempos tem levantado opiniões contraditórias.
Sinceramente, gostei. Uma das razões porque gostei foi ter passado todo aquele tempo
(161 minutos!) bem desperto, sem passar pelas brasas.
O tema do filme atira-nos para o Japão do séc. XVII, quando
a defesa dos valores tradicionais do Japão pelo shogunato leva à perseguição de
tudo o que seja estrangeiro. E o cristianismo é o alvo principal e o símbolo
maior de culturas estranhas, que desde S. Francisco Xavier se desenvolveu na
sociedade japonesa e era preciso erradicar. No centro do vulcão, estão os
jesuítas, quer pela sua força quer agora pela sua atitude perante os
perseguidores. O édito de 1614 a proibir a fé cristã e a expulsar os
missionários não foi suficiente e as comunidades cristãs continuavam na
clandestinidade.
Mas chega à Europa a notícia de um célebre Padre Ferreira,
ilustre missionário e formador de missionários, ter apostatado da sua fé perante
os sofrimentos a que foi submetido, passando a viver segundo os valores
japoneses e o budismo. Logo outros heróis se lançam à fogueira: mesmo perante a
ameaça de morte certa, dois padres (Rodrigues e Garupe) conseguem entrar no Japão
para em segredo contactar e animar as comunidades cristãs e descobrir o tal
apóstata, até para o demover.
Todo o ambiente do filme se caracteriza por uma extrema
violência contra os cristãos e especialmente os padres. Queimá-los com água a
ferver de nascentes termais, pregá-los na cruz no meio de marés vivas até morrerem,
decapitá-los, pendurá-los de cabeça para baixo com a cabeça na fossa, tudo
contribui para dissuadir as pessoas a abandonar a sua fé, e, no caso dos
padres, a grande preocupação era levá-los a apostatar para assim eles darem o
exemplo aos outros cristãos.
E chega de história.
O mais importante para mim foi a encarniçada luta das
autoridades japonesas contra a mentalidade cristã desta gente. Aquelas pobres
almas, de fé simples, que diziam que pagavam todos os impostos, viviam
aterrados com a chegada dos chefes. Mas não largavam a sua fé, pois Cristo
prometera-lhes o paraíso, coisa que na terra lhes estava vedado. Há uma
veneração exagerada pelo padre e muito mais por todos os símbolos cristãos, a
ponto de o padre se ver obrigado a desfazer-se do seu rosário e distribuir as
contas pelos aldeãos.
No meio dos fiéis, também surge um Judas, de nome Kichijiro, que tanto serve
para esconder os padres e levá-los em segurança a outras povoações, como os
entrega por boas quantidades de prata; capaz de apostatar pisando a imagem
sagrada para não sofrer, vem depois, por várias ocasiões, a pedir a confissão
num retorno à condição inicial de cristão como gente digna! É a figura mais
triste, um invertebrado, que quase tira ao filme o ar de seriedade.
A personagem principal do filme, o Padre Rodrigues, levado
por princípios rígidos de educação cristã, não cede em nada e ali está ele a
servir em boa consciência a Igreja Católica. Ele e os simples cristãos
encontram-se ameaçados por um poder político dominador, que condenava mesmo à
morte. Caso o último padre resistente abjurasse a sua religião, os cristãos não
teriam mais o suporte da sua fé. Daí toda a tramóia em volta do Padre
Rodrigues, que se vê confrontado com a morte de cristãos, postos a sofrer
horríveis castigos à sua frente.
A tragédia é esta:
se apostatares, os cristãos não sofrerão mais. Agora, escolhe: queres manter a
tua fé e ver teus irmãos sofrer e morrer ou, por amor aos outros, renuncias à
tua mentalidade cristã? Basta colocar o pé em cima da imagem de Cristo...
Até o célebre Padre Ferreira, apóstata, é trazido para convencer
o seu antigo aluno: “Por
amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. Mas nem este consegue grandes avanços. O Padre Rodrigues
defende «a verdade» de Deus e não dobra. Mas colocado perante situações
extremamente desumanas, lá aceita, sem coragem e sem alegria, renunciar ao seu
passado e iniciar uma vida diferente, ao lado de uma mulher com um filho, que
ele recebeu de outro condenado.
Ter-se-á convertido?
Aqui está o maior mistério do filme. Tudo se encaminhava para o extermínio
da fé, que nas terras japonesas não fazia sentido, «eram um pântano onde não
cresciam ideias novas», como se diz no filme. Mas este, mais que falar de
derrota, apela para a vitória da fé, mesmo que esta seja apenas secreta e
íntima. A própria mulher que o acompanha deposita às escondidas, junto do
cadáver do padre, o pequeno crucifixo que um dia um camponês lhe oferece.
Interrogações:
1 – Quem consegue torcer o nosso íntimo, por maiores
castigos que nos inflijam? Podemos tornar-nos “cristãos-novos” ou “budistas
confessos” sem uma adesão íntima e sincera? Saí do filme a relevar esta
omnipotência da consciência humana, que não dobra. Vamo-nos mudando pela força
da razão, pela lógica dos conhecimentos e ainda pelo testemunho dos outros, o
que explica as verdadeiras conversões.
2 – Quando é que a nossa fé é pura, consciente, bem
esclarecida? É uma interrogação forte do filme, em que se diz, às vezes, que a
fé cristã e a budista são iguais, numa alusão à inculturação que os jesuítas
praticaram (Deus seria o sol, ou a natureza..., alega o apóstata padre Ferreira).
A verdade é que as pessoas deixam-se matar por serem cristãs, como hoje outros
matam à espera das 70 virgens que os receberão no paraíso...
3 – Li que a noção de Deus no filme está mal situada, como
se Ele fosse um estranho a isto; pois eu achei que um Deus paciente, compassivo
e tolerante está bem presente no gesto continuado do padre a absolver o
pecador-judas.
4 - Agora, outra
questão é o silêncio de Deus, que nada diz em nenhuma circunstância,
parecendo deixar-nos ao abandono neste mundo de tantas interrogações. E quem
não sentiu já este silêncio de Deus? O diálogo connosco próprios, o testemunho
dos irmãos e da história é que nos vão animando. Estarei eu certo? Caminhar na
fé é sempre andar com algum nevoeiro, como era aquele ambiente soturno, escuro,
em grande parte das cenas do filme.
Fico-me por aqui para não pesar muito.
António Henriques
Gostei muito do filme. Adorei estas considerações, pois penso que a fé um mistério e falar de mistérios torna-se sempre pouco esclarecedor e difícil de comentar. Parabéns António...
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